Entre Dois Mundos
 
Na segunda metade da década de 60 eu era uma menina de 10 anos de idade - hoje seria considerada pré - adolescente - que tinha aposentado as bonecas há algum tempo e começava a ter interesse pelo universo da moda e dos acessórios femininos. Sempre que era possível eu acompanhava minha mãe e minha avó Olga ás compras na Rua Chile. Os shoppings ainda não existiam e na dita rua, as lojas elegantes da cidade estavam concentradas. 

O meu encanto era com a Casa Sloper, uma loja recheada de uma infinidade de artigos de boa qualidade, freqüentada por mulheres de todas as idades que lá se abasteciam de roupas, sapatos e bolsas requintadas, maquiagem, perfumes, bijuterias e uma série de outros itens. Sentia-me ali descobrindo um mundo novo! Um mundo perfumado e belo que me levava a sonhar e imaginar-me mulher adulta usando aqueles produtos. Aquele era o “templo” onde Afrodite era cultuada.

Ali naquela mesma rua e muito particular e freqüentemente na calçada da referida loja havia uma mulher que exercia sobre mim verdadeiro fascínio, por outros motivos. Uma mulher muito diferente daquelas que adentravam a loja para as compras. Uma mulher que quase sempre em silêncio despertava em mim uma variedade de sentimentos, sensações, questionamentos e reflexões. Era A Mulher De Roxo!

A mulher de roxo, como era conhecida por todos, era assim chamada por não se saber exatamente o seu nome e também porque ela se trajava de roxo da cabeça aos pés, diariamente, exceto em alguns dias que se vestia de preto ou muito raramente de noiva. Suas vestes eram de veludo e incluíam um vestido longo de mangas compridas, uma manta que lhe cobria a cabeça, xale, um grande crucifixo pendurado ao pescoço, vários adereços, pés descalços e uma bíblia que levava nas mãos. Passava o dia na Rua Chile e à noite desaparecia, para retornar no dia seguinte cedinho.

Muitas histórias eram contadas sobre ela e não se sabia ao certo qual delas era a real e quais eram fruto da imaginação popular. Assegurava-se que vinha de uma família de posses, era professora e que sofrera uma dor de amor. Neste ponto as versões começavam a divergir, contudo, sempre girando em torno do mesmo tema. Teria sido abandonada no altar pelo noivo, impedida pela família de casar com o amor da sua vida, teria sido traída.... Assim enlouquecera e fora morar na rua e por isto escolhia cores de luto para se trajar, ou o tal vestido de noiva.

Aquela mulher excêntrica, enigmática, silenciosa, que não importunava ninguém e vivia recolhida em si mesma, tinha para alguns um porte de rainha, para outros, ares de santa e para muitos era uma louca. Sua “presença” era marcante e exalava “autoridade”.  Aquela mulher que fora seqüestrada pela dor para um mundo subterrâneo, tocou profundamente o meu ser.

Se a Casa Sloper abriu para mim as portas da beleza feminina de Afrodite, a Mulher de Roxo abriu para mim o portal para o mundo de Perséfone, o inconsciente com as suas sombras, seus fantasmas, suas dores, seus mortos.

Norma Suely Facchinetti
Enviado por Norma Suely Facchinetti em 17/10/2009
Código do texto: T1871136
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