A memória
Não há coisa mais infiel do que a memória. É como se ela tivesse vontade própria. Ela tem um seletor automático plugado direto no coração. É o sentimento que puxa a memória.
Quando se gosta de uma pessoa, apesar das suas falhas, vícios e más atitudes, a gente só lembra as suas coisas boas, os momentos agradáveis, os sentimentos desfrutados. Mas quando não se gosta de uma pessoa, por melhor que ela seja, a gente só consegue se lembrar dos seus defeitos.
Talvez isso tenha a ver com o fato do povo dizer que quem morre vira santo. É mais raro falar mal de quem morreu. No velório mesmo, só se lembra das boas coisas que o morto fez em vida. Pode ser uma mistura de remorso e medo. Ou porque, como já morreu mesmo, não tem mais graça ficar falando mal.
A memória também é como um mosaico: pequenas peças que isoladas não têm muito significado, porém juntas formam as recordações, boas e ruins, valiosas ou traumáticas.
Mas a memória não é estática, não. Ela vai mudando. É mais parecida com um caleidoscópio do que com um mosaico. Caleidoscópio é aquele aparelho formado por um tubo com pequenos pedaços de vidro colorido que apresentam em cada movimento combinações variadas e belas imagens. “Caleidoscópio”, em grego, significa “vejo belas imagens”.
Dependendo da perspectiva, figuras diferentes vão se formando. As memórias também são assim. Olhando por um lado, parece algo belo, por outro, não tão legal. Tudo depende. Com o passar do tempo, vamos mudando as pecinhas de lugar, confundindo a ordem dos fatos, a forma com que os acontecimentos ocorreram, um fato parece mais intenso, outro menos relevante. Assim são as memórias, assim como o caleidoscópio, um mosaico dinâmico.
A memória não tem uma relação direta com o tempo decorrido desde o fato relembrado. Existem fatos muito antigos que continuam vívidos na memória, indeléveis, irretocáveis, por toda a vida. E tem coisas recentes que já não lembramos mais com tanta clareza.
Da mesma forma, existem acontecimentos que gostaríamos de esquecer, mas eles continuam lá, insistindo, importunando, reaparecendo. Há outros que fazemos o maior esforço para lembrar – ah, como é terrível quando esquecemos uma palavra bem no meio de um discurso improvisado! – , mas nos escapam como fumaça.
As boas recordações trazem a dor da saudade. As más lembranças conferem a certeza da mudança.
A memória além de infiel é traiçoeira, trapaceira, involuntária. Como domá-la? Ela é como os pensamentos e os pensamentos, como já disse, são como os pássaros, que pousam no nosso ombro sem que os tenhamos chamado.
(Catalão, 14/10/2009)