Uma bodega filosófica

Zé de Bica tem uma bodega na cidade de Itabaiana, terra do poeta Zé da Luz. Bodega você sabe o que é, né? Uma vendola de secos e molhados, onde o matuto também pode molhar a goela com a melhor “pau dentro” da região. “Pau dentro” você sabe o que é, né? Uma bebida fermentada misturada com mel de abelha e algumas raízes medicinais.

A bodega do Zé de Bica é palco de muitas cantorias de “pé de parede” de poetas repentistas. Eles chegam na segunda, véspera de feira, de tardezinha, e abrem a sessão com um prato no meio, dois ou três pinguços e muita imaginação. Desses, tem dois poetas que eu acho o máximo! Curió de Salgado e Antonio Xexéu. Esses dois passarinhos tem dia que estão inspirados como nunca. Cantam pela noite adentro no ritmo da viola, e haja toada, e haja poesia, e tome versos celestiais. E tome “pau dentro!”

Outro dia pedi um mote sobre o poeta Augusto dos Anjos. Augusto você sabe quem é, né? Aquele poeta de Sapé que escreveu uns versos da gota serena de científicos, cheios de nomes estrambóticos. Mas é como disse um escritor aqui da terra: quando o poeta está na boca do povo, é porque está consagrado pra “seculum seculorum”. Assim falou Zaratustra e Antonio Xexéu. Augusto é assim, um poeta que todo bebinho sabe de cor alguns versos. E cantador de viola sabe tudo! Aí eu botei dez reais no prato e pedi:

--- Cantem um trocado sobre Augusto dos Anjos.

Curió de Salgado largou o vozeirão:

Ele já foi decantado

Por todos os trovadores

E bons improvisadores

Do verso escrito e cantado.

Desde os vates do passado,

A arte desse poeta

Aponta como uma seta

O objetivo da vida:

O belo é a grande meta.

Mesmo falando da morte,

Esse poeta do “Eu”

Que lá em Sapé nasceu

Tinha a natureza forte

Pois a beleza era o norte

De sua obra imortal,

Criação original

Da mente do mestre Augusto

Por isso eu digo sem susto:

Excede o bem e o mal.

Curió é um poeta educado, estudioso e falante, fugindo do padrão do violeiro, que é conhecido por ter uma grande imaginação mas sem as luzes das letras. Xexéu é semi-analfabeto mas que poeta! Vejam o que ele cantou, e eu consegui anotar:

84 era o ano

E o século dezenove.

Lentamente já se move

Esse poeta troiano

De cuja obra eu me ufano

Sem medo da podridão

Arrastando o coração

Do homem com seu escarro

Pois somos feitos de barro

E o destino é o caixão.

No fim, Curió arrematou com esses versos geniais:

No dia 20 de abril

Comemoro o nascimento

Desse homem de talento

Que lá em Sapé surgiu

Pois o mundo nunca viu

Tanta arte e irreverência

Com a clara consciência

Da nua realidade:

A tragédia e a maldade

De nossa humana vivência.

No mais tudo é teoria,

Só lendo os versos do “EU”

Pra sentir como sofreu

Augusto em sua agonia

Descrevendo a anarquia

Que é a natureza humana

Com a crença soberana

De uma obra singular.

Augusto foi e será

O maior dessa porfia.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 15/10/2009
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