BOLA DE PANO

Como a imensa maioria das crianças do meu bairro humilde, cujos pais não tinham as mínimas condições de comprar brinquedos para eles, eu mesmo procurava fazê-los com as próprias mãos devaneando na inocência e na ansiedade de sonhar como qualquer menino sonhador nesse momento mágico da existência humana. Mas essas tentativas de confeccionar brinquedos nunca deram certo para mim, eu não tinha a menor habilidade para isso, e muitas vezes ou quase sempre eram absolutamente vãs, porque o produto final era mal feito e tosco demais ao fim e ao cabo. Os brinquedos, fantasia de todas as crianças, não podiam ser adquiridos por pais de família pobres, exatamente o caso dos meus e de tantos outros da circunvizinhança, sob pena de, se o fizessem, faltar dinheiro para outras necessidades mais prementes. O pão diário na mesa para todos, embora o mínimo possível, era a maior prioridade, razão máxima, número um de toda labuta cotidiana. Nordestinos de origem humilde não podiam dar-se o luxo de desperdiçar a pouca grana recebida a duras penas com veleidades infantis.

Naquela época, meus dois maiores desejos infantis se resumiam na bola de borracha - a de couro não podia fazer parte nem dos sonhos, porque luxo integrante do impossível para nós - e o carrinho das lojas, e eu suspirava ao vê-los expostos nas vitrines porque os sabia objetos inalcançáveis, minhas mãos não os tocariam em nenhuma ocasião da meninice. Não me custava sonhar, contudo. E ver alguns dos raros meninos privilegiados da vizinhança brincando com esses regalos tão queridos e desejado das crianças me causava uma infinita tristeza, que nunca fui capaz de escamotear. Brincar muitas vezes se tornava motivo para ir às lágrimas sem compreender por que o mundo tinha tantas contradições, tamanhas e injustas diferenças sociais capazes de marginalizar as pessoas. Eu e um sem número de outras crianças não tínhamos acesso a bolas ou carrinhos de brinquedo, e não havia explicação para isso em nossos corações.

Jamais desenvolvi a habilidade essencial para fazer meus próprios carrinhos de brinquedo com a desenvoltura de outros coleguinhas da rua, embora muitas vezes os presenciasse a fazê-los usando o alumínio das latas de óleo secas e qualquer pedaço de madeira encontrado por aí para confeccionar as quatro rodinhas do brinquedo. Assistia-os, buscava aprender, anotava os passos importantes da tarefa, mas na hora agá misturava tudo e botava os pés pelas mãos, dando tudo errado. Por diversas vezes tentei, mas em nenhum momento consegui a absoluta perfeição encontrada nos trabalhos deles. Eles preparavam mini mercedes benz, caminhões de carga ou carros de passeio com as mesmas características dos originais, incluindo os feixes de mola das rodas dianteiras e traseiras, as carrocerias de cada um, e ainda colocavam bonecos sentados no banco da frente segurando a bela direção como se fossem motoristas, tudo com uma facilidade de impressionar. Para mim era muito difícil fazer isso, impossível mesmo.

Por isso eu me consolava com as latas de leite usadas enchendo-as com areia e fazendo um furo em cada extremidade, nelas colocando um pedaço de arame, que atravessava a lata de ponta a ponta, amarrando nos lados a fina linha de carretéis jogados fora, cordão ou barbante encontrado em qualquer lugar, e pronto, só isso. Então, voilá, estava terminado o meu desengonçado carrinho, enquanto os demais brincavam com suas miniaturas de carros bonitas, cópias semelhantes aos de verdade.

Quanto às bolas que não tinha, eu improvisava com nossas famosas bolas de pano e me contentava com elas, que faziam quase sempre o mesmo efeito das de borracha. Bem, pelo menos quando queríamos jogar gol a gol(brincava-se da seguinte maneira: eu ficava de um lado do corredor, da calçada ou do quintal, e meu irmão do outro;com a mão esquerda jogava a bola de pano para cima e, antes que ela caísse, chutava-a na direção dele. Se ele não agarrasse a bola era gol, ponto para mim; lá do seu "campo" ele igualmente chutava para mim com o mesmo intuito. A satisfação era idêntica, o prazer, o mesmo.

A bola de pano servia também para o futebol de poeira, mesmo sendo menor que as de borracha normalmente usadas para esse fim). Pedia a mamãe uma meia velha em desuso e procurava pela casa pedaços de panos rasgados, retalhos jogados pelos cantos e colocava tudo dentro da meia, comprimindo com o punho para endurecer até formar uma esfera não muito rígida nem tampouco macia demais, em seguida dava um nó na parte da perna da meia vazia, e lá estava a bola pronta para ser usada.

A infância passou, cheguei à adolescência, tornei-me adulto e as bolas de pano foram substituídas pelas oficiais, os carrinhos de madeira, pelos comprados em lojas, então, finalmente, brinquei com esses brinquedos através de meus filhos, ficando a bola de pano guardada no arquivo das lembranças inesquecíveis.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 13/10/2009
Reeditado em 12/07/2010
Código do texto: T1864755
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