O ROSTO DE NINGUÉM

Para Jorge L.

Burguesa por formação e fado, partilhei ao longo de quase vinte anos teu destino de anarquista, tua mansarda, teus rumos alineares, teu compromisso com o destino da Espécie, tua condição de apátrida, tuas múltiplas línguas, tua estirpe não gregária, teus deslaços de família, tua solidão essencial.

Durante quase duas décadas segui contigo, desenraizada de tudo a que pensara pertencer: o percurso regular dos relógios, o trajeto uniforme dos afetos, a partilha das datas comemorativas - casamentos, separações, sucessão de gerações; as heranças, as desafinidades eletivas, as cordialidades de encomenda para se ficar bem nos álbuns da família,da família a permanecer intocada para sempre.

A vida torceu-nos os rumos todos, na tua, na minha vida. A despeito de tudo, permaneceste fiel a ti mesmo, mais do que nunca fiel ao teu ideário, mais livre do que nunca na tua condição de apátrida, de ser sem raízes, de homem só de riquezas mentais acumuladas ao longo da vida pelo lado de fora de todos os muros do Sistema.

Eu, por minha vez, voltei para o tempo regular dos relógios, dos passos medidos, dos textos lineares, da uniformidade dos afetos. Ficaram-me de ti a estranheza absoluta diante de cada um dos mundos e a certeza do mais perfeito não pertencimento a quem quer que seja e ao que quer que seja, neste meu rosto de agora: o rosto de NINGUÉM.

Noite de 13 de outubro de 2009.