Metamagrelagem
Mais uma vez sou movida a escrever porque algum amigo me deu o mote ou o tema, involuntariamente, através de uma sua crônica. Desta vez foi o José Cláudio, nos contando com tanta graça o seu tragicômico caso com as bicicletas.
Pois eu, ainda criancinha, pedalando alegremente o meu velocípede, ficava encantada com as suas irmãs mais velhas, as bicicletas.
Na minha visão infantil, parecia ser um milagre impossível que alguém pudesse se equilibrar naquele veículo de apenas duas finas rodas unidas por um finíssimo quadro, uma adiante da outra. Até porque, apesar de o meu ter três pequenas e melhor dispostas, não foram poucas as vezes em que a afoita imperícia me levou a capotar nas curvas enlouquecidas ou em meios-fios que, sabe-se lá como, vinham parar sob alguma das rodas. E como joelhos, cotovelos, narizes ou quadris ralados jamais constituíram motivo suficiente pra me desanimar, sonhava com o dia em que finalmente teria uma linda bicicleta.
Os anos foram passando e eu fui crescendo, ou melhor, fui espichando -- comprida, magrela e cheia de alegre e ativa energia, como as tão sonhadas bicicletas --, mas as prioridades econômicas da família, com uma escadinha de crianças em idade escolar e necessidades variadas, não permitiram que o meu sonho fosse realizado. Embora até hoje eu desconfie que, na verdade, minha mãe tivesse medo de que eu fosse quebrar todos os ossos do corpo caso me soltasse no mundo com uma bicicleta...
Por sorte, os amigos vez por outra me emprestavam as suas e lá ia eu, feliz como uma andorinha, voando baixo pelas quadras de Brasília, pedalando com a fúria contente dos entusiasmados amantes da liberdade e da velocidade.
Ao entrar pra UnB, cheia de aulas e tarefas e estágios e bicos pra atender e cumprir, me virava na locomoção entre ônibus e caronas, bem como com as looongas caminhadas, que mais do que uma necessidade, sempre foram um hábito prazeroso.
Até que um dia, eu e um grupo de colegas recebemos um gordo prêmio em dinheiro -- dado pelo extinto BNH -- por um trabalho que havíamos desenvolvido... e finalmente pude comprar a minha tão sonhada bicicleta!
:)
Alegria, emoção, ansiedade, tudo se misturou atropeladamente, quando pus as mãos na minha magrela!
Uma modesta porém honesta Monark de dez marchas, com aquele guidon retorcido das bicicletas de competição, acinzentada com detalhes em vermelho, azul e amarelo, pneus castanhos com banda branca e presilhas nos pedais. Comum e nem um pouco sofisticada, mas aos meus olhos encantados ela era a coisa mais linda e preciosa do mundo!
O contentamento foi tão grande que jamais quis guardá-la no quartinho próprio que havia no nosso bloco. Ela dormia comigo no meu quarto, encostada na estante de livros, orgulhosa e bela como uma potrinha dengosa.
Adeus aos ônibus, às caronas e às longas caminhadas! Era agora independente e autossuficiente, além de muito mais veloz e versátil na locomoção.
Saíamos todos os dias pela manhã, adrenalina e endorfinas como combustível, a caminho da FAU, onde a amarrava carinhosamente numa das três grandes escadas em espiral do imenso ateliê, o bicicletário por excelência dos felizes proprietários de magrelas e camelos, que era como se chamavam as bicicletas então.
Graças a ela, fiz amizade com outros colegas tão apaixonados pelo seu prático veículo quanto eu. Com eles aprendi alguns macetes e até como fazer pequenos consertos e ajustes na hora do aperto. Na mochila, sempre carregava o kit de primeiros socorros ciclísticos entre os livros e cadernos e lapiseiras e réguas e esquadros e outras tralhas necessárias. Perdi a conta de quantos remendos tive que fazer nas câmaras de ar e de quantas vezes precisei recolocar as correntes no seu devido lugar.
Confessávamos sorridentes uns aos outros que adorávamos quando tínhamos aulas ou outros compromissos nos departamentos mais afastados ou, de preferência, fora da universidade, o que nos dava a muito bem vinda oportunidade de pedalarmos mais um bocadinho durante o percurso.
Com o tempo, fui adquirindo prática e tomando confiança.
Passei a usá-la como meu veículo único, não importava quão longe ou a que hora tivesse que ir, chovesse ou fizesse sol. Enfrentava o trânsito do rush -- que naquele tempo ainda não era tão intricadamente denso, pesado e perigoso como hoje --, bem como as longas distâncias, com a mesma alegria com que pedalava nos finais de semana, me sentindo a mais livre e feliz das criaturas, quando vinha de madrugada pelas ruas praticamente vazias e retas, vento no rosto e a alma inflada, de volta dos festivos encontros com a turma no Beirute, o bar preferido de dez entre dez estudantes e artistas da cidade. E, graças ao anjo de guarda protetor dos inocentes e felizes, milagrosamente chegavámos sempre inteiras e sãs.
Meus amigos e colegas costumavam dizer que eu praticava a metamagrelagem -- uma magrela pilotando outra -- e que não poderiam mais conceber uma sem a outra, de tão inseparáveis nos tornamos.
Por fim, quando me formei tive que me render tristemente às evidências. Seria impossível ir visitar as obras e voltar pro escritório onde fui trabalhar, bem como ir conhecer os terrenos dos novos clientes, ir ao Setor de Indústrias pesquisar materiais e fazer tudo o mais que um arquiteto júnior tem que fazer, usando unicamente a bicicleta. Não teria tempo pra isso, nem mesmo energia, dado que as distâncias a serem percorridas no dia-a-dia tinham aumentado consideravelmente, na medida em que os prazos encolhiam.
Então tive que aposentar a minha amada magrela, já bem gasta e usada, cheia de marcas que contavam muitas e muitas histórias vividas, e substituí-la por um fusquinha.
Fusca esse que terminou por ser quase tão amado e inseparável quanto o fora a bicicleta, mas isso é assunto pra outra crônica.
Muitas vezes pensei em comprar outra pra usar nos dias livres, mas terminava sempre adiando, adiando, adiando...
Porque, se por um lado havia o comodismo do carro e o sempre renovado prazer das longas caminhadas, por outro havia uma certeza jamais formulada, apenas levemente consciente, de que nenhuma outra poderia substituir a minha tão amada, útil, fiel, resistente, bem disposta e saudosa magrela.
Que Deus a tenha. E que os anjos a aproveitem e amem como eu a amei e aproveitei.
Ou alguém aí duvida de que a minha bicicleta tivesse uma alma?