XERAZADE DO SERTÃO
Itamaury Teles
Por esses dias, tomei conhecimento de uma história fascinante, que vem ocorrendo em uma fazenda próxima a Montes Claros. Nela moram duas pessoas que passaram a ter um relacionamento amoroso movido talvez mais pela necessidade que por afeição.
Tendo herdado uma fazenda, conhecida figura montes-clarense – que aqui chamaremos de Zezinho -, resolvera mudar-se de malas e cuias para a zona rural. Lá chegando, viu que não daria conta de ali morar sem a ajuda de uma empregada doméstica, para cuidar de suas roupas e da sua alimentação.
Foi assim que a admirável Fulgência – a própria perdição em pessoa – fora contratada. Morena sacudida, de ancas buliçosas e seios voluptuosos – que teimavam em saltar fora do decote generoso do vestido de chita - , chamou a atenção do patrão, solteirão convicto, dado a pândegas pelos cabarés da cidade...
A história de amor da Fulgência poderia muito bem ser confundida com várias outras, pela trivialidade desses encontros fortuitos, mas há detalhes nela que me fizeram lembrar dos lúdicos casos narrados pela bela Xerazade, para entreter seu interlocutor, nas famosas “Mil e uma noites”. Estas histórias se alicerçam, basicamente, em Xerazade narrando aventuras ao atento ouvinte Xeriar. Ele, poderoso sultão saturado da infidelidade das mulheres, teria decidido tomar diariamente uma nova esposa, matando-a após a noite de prazer. Era tão extremado este procedimento que o grão-vizir encarregado de arranjar as esposas foi surpreendido pela própria filha, Xerazade, que se dispôs a demover o sultão da prática que amedrontava os súditos. Xerazade articula uma saída: depois de uma sessão de amor, iniciava uma história e interrompia a narrativa da noite no momento mais empolgante, tal como acontecia nos seriados que antecediam aos filmes nos cinemas de antanho e, atualmente, nas novelas televisivas.
Satisfeito sexualmente e curioso em saber o desfecho da história, o soberano ia postergando-lhe a morte. Foi assim que, depois de ter dado a Xeriar três filhos, Xerazade o convence de que ela seria a única mãe capaz de garantir o amor a seus filhos. Assim, valendo-se de mil artifícios, a mulher ia tirando partido da situação e, principalmente, ganhando tempo e salvando a própria pele...
Mesmo sem nada saber dessa história das Arábias, a esperta Fulgência – a Xerazade do sertão – engendrou fórmula capaz de manter seu relacionamento com o patrão, já que este, preocupado em não dividir seus bens com aquela mulher inculta, de quando em quando resolvia mandá-la embora. Principalmente quando chegavam à fazenda seus amigos da cidade, em visita de cortesia, ou mesmo para negociar gado de corte.
Numa dessas oportunidades, ele foi visto tratando-a com casca e tudo, para a indignação do visitante:
- Ô égua, acabando esse almoço aí, pegue sua trouxe e desapareça do mapa. Num aguento ver mais sua cara de tacho...
E ela, humildemente, não contestava:
- Tá bom, “seu” Zezim. Assim que eu terminar o almoço eu vou.
Terminado o almoço, servida a comida, vinha lá novo berro:
- Pode ir agora, infusada. Tá na hora de limpar o beco.
Com a mesma humildade de sempre, Fulgência não criava caso:
- Tá bom, “seu” Zezim, mas deixa eu apenas lavar as vasilha...
Terminada a lavagem das vasilhas, outra espinafração fazia-se ouvir:
- Agora que lavou as vasilhas, pode juntar suas trouxas e cair no bengo.
E, sem alterar a voz, ela falava com carinho:
- Ué, “seu” Zezim, e o café da tarde. Quem vai fazer?
E assim, de almoço para o café da tarde, deste para o jantar e, no dia seguinte, tudo acontecendo da mesma forma, num típico trabalho de Sísifo – que nunca tem fim -, Fulgência vem conseguindo viver por mais de vinte anos com o Zezinho. Quando não tem visita, ele a enche de dengos. E assim vão levando a vida...