Fome de pedra

O contato diário que travo com meus vizinhos é capaz de proporcionar momentos, digamos, inesquecíveis, como no dia em que um pássaro, cujo nome me foge à memória, caiu no quintal de minha casa. O bicho em questão, aparentemente, nada havia quebrado, só que não conseguia alçar voo, então eu e meu sobrinho resolvemos tratá-lo. Tenho mesmo essa mania de samaritano com tudo que é bicho, viro até as baratas que encontro de patas para o ar. Mas como eu ia dizendo, se não voava, devia estar ferido, demandando cuidados. Como pouco entendo de pássaros e o adiantado da hora não permitia que o levasse ao veterinário mais próximo, achei melhor pô-lo em uma gaiola que há muito estava encostada lá em casa. Antes que pensem qualquer coisa de mim, a gaiola não me pertencia, mas sim a um ex-cunhado que por lá a havia deixado, sempre achei um absurdo prender em um espaço tão limitado um bicho que tinha os céus como lar. Quando já ia recolhê-lo, meu sobrinho aventou para a possibilidade dele estar com fome. É, devia estar. Pensei que era impossível arrumar algo para que ele comesse àquela hora. Além do quê, pássaros são cheios de peculiaridades, uns comem alpiste, outros comem outras coisas. O melhor mesmo seria levá-lo, no outro dia, a Alessandro, um vizinho meu que desde pequeno criava toda espécie de ave. Fomos dormir.

Na manhã seguinte fui falar com o tal vizinho entendido de pássaros. Foi até fácil achá-lo, estava varrendo a calçada de sua casa.

“Bom dia, Alessandro”, disse-lhe cortesmente.

“Bom dia, Thomaz”, retribuiu meu vizinho.

“Alessandro, estou com um problema lá em casa.”

“Pois diga lá do que se trata.”

“É que ontem caiu um passarinho lá no meu quintal, acho que está ferido e também com fome, mas não sei o que lhe dou de comer. Fiquei com medo de dar qualquer coisa, sabe como são esses bichos com comida.”

“É, sei. Traz o bicho que te digo o que ele come.”

Contente com a sabedoria aviária de meu vizinho, fui buscar a gaiola. O passarinho estava em um canto, mórbido – mais um indício de que deveria estar faminto.

Alessandro olhou rapidamente o animal, disse seu nome e em seguida traçou o seu cardápio.

“Pedra. Ele com pedra.”

Pensei que ele estivesse de brincadeira ou então eu havia ouvido errado.

“Alessandro, acho que não entendi. O que você disse?”

“Eu disse que ele come pedra.”

“Pedra?”, repeti incrédulo. “Como assim come pedra?”

“Pedra. Que nem as que você acha no chão.”

“Você tá de brincadeira, não é? Que Bicho no mundo come pedra?”

“Esse que você tem na mão come.”

“Poxa, Alessandro, o bicho não come desde ontem e você me vem com essa! Eu tenho que dar comida a ele.”

“Vai por mim, rapaz. Dá pedra que ele come.”

“Ah, tá bom, Alessandro”, disse enquanto ia embora. Onde já se tinha visto aquilo? Eu falando que o passarinho estava com fome e ele me mandando dar pedra para ele.

Não sei de onde meu vizinho havia tirado aquilo, mas que o bicho tinha que comer, ah, isso tinha! Mandei que meu sobrinho comprasse alpiste – que até onde eu sabia era de fato comida de pássaro –, mas quem disse que ele queria.

“Tio, o passarinho não tá comendo”, disse meu sobrinho, já sensibilizado com o jejum.

Disse para meu sobrinho continuar insistindo. Depois a gente veria com ia fazer, por enquanto eu tinha que ir trabalhar, já estava me atrasando.

No trabalho não consegui me concentrar em nada, só pensava no pobrezinho que nada conseguia comer. Devia ser o caso de levá-lo ao veterinário. Tinha que ser. Como será que era a consulta de passarinho? Já tinha visto de cão e gato, mas pássaro era novidade. O veterinário fazia o quê, mandava o bicho subir no poleiro e abrir o bico?

Voltei para casa. Meu sobrinho disse que o passarinho continuava sem comer.

Olhei-o através das grades da gaiola, ainda mais triste, muito quieto mesmo. Quando eu era menino, me disseram que aquela quietude em bichos tão agitados como eram os pássaros, era o indicativo de que estavam próximos da morte. A lembrança me encheu de preocupação. E se ele estivesse para morrer mesmo?

“Acho que vamos ter de levá-lo ao veterinário” disse ao meu sobrinho, enquanto sacudia a gaiola à espera de uma reação qualquer.

Ele nem se mexeu.

“Tio, será que ele não come pedra mesmo”, disse meu sobrinho, na mais infantil das esperanças.

“Bobagem, menino. Onde já se viu um absurdo desses”, repreendi, mas já sem tanta certeza assim. Vai que de repente ele comia pedra mesmo?

Resolvi tirá-lo da gaiola. Nem bem puxei a portinhola e o pássaro, num agito só, voou para bem longe de qualquer mão humana. Bom, pensei, se tem forças para voar, deve ter para se alimentar sozinho – até para comer pedra, se for o caso.

Faz uns quatro anos que isso aconteceu e nunca mais caiu pássaro de espécie alguma em minha casa. Dia desses encontrei com o Alessandro na rua, casualmente. Falei-lhe da história do pássaro e de como fugira de minhas mãos. Alessandro limitou-se a ouvir e reafirmar o que dissera quatro anos atrás: aquele pássaro comia pedra. Também me disse que eu havia sumido, que fazia tempo que não falava com os vizinhos.

“Ah, é? Então passa lá em casa qualquer dia desses, para conversarmos melhor. Você aproveita e almoça comigo”, convidei.

“E o que vocês costumam almoçar por lá?”

“Olha, Alessandro, geralmente comemos qualquer coisa, mas como é você que vai comer lá em casa, nós podemos comer tijolo, amigo. Tijolo.”

Thomaz Ribeiro
Enviado por Thomaz Ribeiro em 11/10/2009
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