Escalando Muros de Gelo
Imagine uma sala de aula, onde não há bancas e cadeiras suficientes, o quadro negro é esburacado, os alunos estão desmotivados, famintos, maltrapilhos e atrasados. O giz é controlado, falta material escolar. Os sanitários infectados e os corredores e salas imundos.
Eu era uma das que fazia parte desse grupo. Usava quase todos os dias um vestido azul de bolinha branca, tendo o cuidado de não levantar o braço e mostrar o tecido ralo e desbotado. Se a memória não falha só havia esse vestido no guarda roupa, que servia para sair, o resto era um amontoado de trapos. Esse vestido era pau pra toda obra e já havia pertencido a outra dona.
Alguns professores se esforçavam para nos alcançar e nos mostrar uma saída através dos estudos, mas era uma batalha, muitas vezes fadada ao fracasso. Outros nem pareciam notar nossas tentativas para escalar aqueles muros escorregadios. Escorregadios porque eram muros de gelo. Talvez esses professores já tivessem perdido a sensibilidade diante de uma rotina tirânica e destruidora. Tirânica porque maltratava e oprimia vidas inocentes e em formação. Éramos botões sem direito a nos transformar em rosas. Destruidora, porque nos tirava o direito de sonhar. Como náufragos que avista ao longe a terra firme, corríamos em direção aquele que nos olhava como gente, com sentimentos, porém entorpecidos pela realidade.
Eu estava com 18 anos, cursava a 8ª série. Um professor chamado Patrício chegou, e uma grande mudança ocorreu na classe. Ele nos incentivou a dá mais um passo a frente. Coitado. Quando penso naquele professor tendo apenas duas opções: entregar-nos folhas mimeografadas com textos ou então a cansativa tarefa de escrever num quadro cheio de buracos, com o verde esmaecido e grosso feito uma lixa. Os alunos semi analfabetos, lentos na escrita, no raciocínio e consequentemente na aprendizagem. Mas ele insistia, porque acreditava em nós.
Numa dessas aulas, ele nos mandou criar um texto. Passamos a queimar as pestanas, e a maioria não conseguiu passar das quatro linhas. Eu, e alguns poucos entregamos a tarefa, receosos de levar um “olho de boi”. Porém toda folha de papel jornal (não usávamos papel ofício, pois era um luxo inacessível) havia sido preenchida de cima a baixo. No final da segunda aula, professor Patrício me chamou e trêmula (sempre tive medo de professor) me aproximei. Ele mostrou meu texto com uma nota alta, apesar das correções feitas em caneta vermelha. No final da folha estava escrito: Parabéns. Vá em frente. Você é inteligente e capaz.
Foi um momento inesquecível. Ele não deixou de perceber além das minhas limitações. Desde esse dia passei a correr atrás do prejuízo. Como não pude continuar os estudos, larguei na metade do ano para trabalhar. Mas percebi que surgiu uma necessidade, uma ânsia, um desejo compulsório. Tornei-me rata de biblioteca. Conclui o segundo grau nas pausas entre os empregos, pois as oportunidades que surgiam tinham que ser agarradas com unhas e dentes, os patrões abusavam dos nossos direitos e todo mundo tinha que calar e suportar. Sabíamos que havia uma multidão esperando por nossa vaga.
Hoje olhando os livros do segundo grau vejo que muita coisa foi deixada de lado na sala de aula. Nunca aprendi Geometria, nem Literatura, e outros assuntos mais. Os professores não conseguiam avançar por causa da classe onde a maior parte era atrasada.
Hoje, escrevendo essas linhas, vejo-me querendo saber onde estará o professor Patrício. Será que ele sabe que por causa daquelas palavras uma das suas alunas passou a escalar os muros de gelo que surgiram? Muitas vezes ela conseguiu, outras não. Mas tentou.
Numa propaganda eleitoral do partido da senadora Marina, podemos ouvir um pouco sobre as lutas e escaladas que esta mulher teve para chegar aonde chegou; também lembrando uma aluna que se formou aos oitenta anos e uma semana após morrer feliz e realizada; percebi que o que hoje faço e insisto não é uma escalada vã, mas sim, fruto de um coração que corre atrás do que sonha, nem que para isso tenha que escalar muros de gelo.