Há vida nas calçadas...
Eu, fumante inveterado e levantador de copo que há muitos anos não andava por aí resolvo fazê-lo e me divirto com isso. É engraçado levantar cedo, tomar banho, se vestir para andar, agasalho, tênis, etc...abrir a porta de casa, escolher o roteiro e rumar.
De cabeça baixa olhando para a primeira calçada vem a minha mente, naquelas pedras encaixadas às pressas e desniveladas a figura do construtor e do operário que a criou... êpa!, um cocôzinho esteticamente arranjado em espiral adorna uma pedra que o acolhe sem resistência.
Fico imaginando o tipo de cão que fez aquilo. Por que a escolha daquela pedra inocente? Ou será que foi um gato ou até mesmo um humano. Como não entendo de merda e nem quero me especializar no assunto faço um ligeiro desvio e me deparo com aquelas lixeiras enormes, porta-seios de detritos humanos que moram nos edifícios, que estreitam a calçada formando um corredor polonês com odores mixados de difícil identificação.
Observo a faixada do prédio e tento visualizar sob a transparência das paredes que dividem os apartamentos os acontecimentos simultâneos daquela hora. As relações entre as pessoas que lá vivem e seus movimentos indicam aos meus olhos vários fotogramas de inúmeros filmes com estórias privadas e algumas até censuradas.
Minha imaginação prossegue, enquanto ando, saio daquele corredor alcançando a esquina da jauaperi com a gaivota.
Um pássaro enorme e majestoso com o peito alaranjado aterriza na intersecção das guias que se encontram e se casam formando uma curva. Na busca pelo alimento me despreza e não alça vôo.
Talvez, como as pombas da Sé, tenham acostumado com os andantes matutinos inofensivos, preocupados com o ritmo do andar, a hora e a saúde. Acendo um cigarro, pois a saúde merece um pouco de veneno, senão onde fica o equilíbrio? Deve ser chato ser totalmente saudável, mais que chato... uma doença.
Atravesso a rua e imagino que por debaixo daquele asfalto jazem árvores, insetos, bactérias e animais que ontem ali viviam. Projeto como num filme o cenário que minha imaginação está produzindo. A demolição dos imóveis e do asfalto, o surgimento de uma pequena floresta e o encantamento daquele pássaro com a minha magia.
Como integrar a realidade na ficção? O peito alaranjado tangencia minha cabeça como num sinal de aprovação ou será que ficou assustado com o novo cenário? Passo a borracha no celulóide imaginário e lá estão intocáveis torres de cimento e pedra selando o passado na minha mente.
Agora sobre uma calçada de azulejos, escorregadia, em frente à casa 789, meus pés tentam formar uma triângulo aprumando o equilíbrio. Uma mudança de cena inesperada e chocante. Do cimento e asfalto para o azulejo. Fico imaginando o estereótipo do dono daquela junção de desenhos brilhantes. Talvez aquele instinto animal de demarcação de território, via urina, tenha se manifestado no autor daquela obra. O individualismo é marcante nestas condições. Apenas alguns metros de azulejos marcam o território daquele indivíduo.
Percebo que o cachorro de uma dona que vem em minha direção passa rápido por aquele piso e nem insinua uma mijadinha. Fico frustrado pelo gosto dos cães que não apreciam a beleza do conjunto azulejado.
Me parece ter o proprietário daquele mosaico conhecimento dos gostos caninos. Pode ser uma nova técnica de rejeição à merda e urina.
No 801, a calçada é de ardósia, aquela áspera e meia acinzentada. Uma pedra olha pro sul e outra pro leste. O desenho assim composto, deixa a gente um pouco tonto. Desvio o olhar para adiante matando aquela sensação tonta.
A ardósia, coitada, é frágil e com o tempo além de manchada pelos passos tem sua estrutura molecular desfigurada pelas lascas que soltam. Entre o sul e o leste mais uma lasca e uma plantinha teimosa em aparecer surge no meio das pedras sinalizando vida naquele deserto petrificado. Me abaixo, com muito esforço, para observar a isolada teimosinha.
-Caramba! Que você está fazendo aí embaixo no meio destas pedras numa calçada pronta pra ser pisada?
-Não tenho escolha. Pra nascer e viver preciso da luz e água. E vc que tá fazendo aí em cima andando que nem besta?
-Pra viver preciso ter saúde e meu médico prescreveu andanças matutinas.
-Andar? Minha espécie não se locomove e vivemos séculos!
-Mas eu posso te dar uma pisadinha e adeus plantinha.
-Pode pisar que eu renasço.
-Olha que eu piso!
-Experimente, e volte daqui 7 dias que estarei como hoje. Pronta pra ser pisada.
Adoro desafios, olhei para os lados a procura de cúmplices quando me certifiquei que estava só, esfreguei meu tênis sobre a plantinha e pra ter certeza que ela não renasceria, retirei, com as mãos, todos os vestígio de raiz que haviam no buraquinho.
Levantei-me orgulhoso do feito ou talvez da provocação e continuei minha caminhada. Desta vez, percebi, olhando mais atentamente, que haviam plantinhas por toda parte. Lembrei do jardineiro da minha casa que uma vez por mês retira as ervas-daninha. Se é uma profissão, reconhecida pelos humanos, eu não tinha motivos para ter remorso. Afinal, também tinham as pessoas que as pisoteavam sem saber. Acho que neste caso era pior pois a morte vinha com desprezo. Eu pelo menos conversei e fui provocado. Talvez procure um motivo pra justificar minha atitude. Nesta hora surge uma voz que, desde pequeno me acompanha, invade sem pedir licença e me toma.
-Coitada da planta, você tirou uma vida, volte lá e replante.
A voz é presunçosa, tem a verdade absoluta.
-E o jardineiro? Indago safadamente! Andando, com vontade de voltar.
A voz é vencedora, sei que não vai me deixar. Devo voltar pra voz ir embora ou pra planta ressuscitar?
A caminhada segue tensa, preocupado com o tema, não consigo me concentrar. A paisagem passa, acendo um cigarro pra me acalmar. Vejo um catador de papel com seu veículo movido à força vital. Me chama atenção os dois cães que sobre a caçamba dormem ao balanço do veículo. Penso na ligação afetiva entre os animais e os humanos. Quem é mais animal? O sistema devora , consome e mutila. A sociedade paga pela sua resultante, a miséria. Invejo o amor dos animais.
No 904, uma calçada ajardinada, meio pedra meio grama interrompe meu pensamento e aguça minha visão. Paro por um instante, ninguém é máquina, contemplo o pretexto à minha preguiça. Um sorriso interno aprova a atitude. São pedras falsas destas que o homem tenta domar dando forma às saliências que o tempo veio moldar. Penso no sofrimento daqueles átomos que naturalmente acasalados divorciam-se sob a serra e o esmeril das máquinas. A natureza imitada sobre a ação humana é ridícula e risível. Grama, pedra falsa, grama , pedra falsa e ...uma enorme árvore com suas raízes expostas... impede minha passagem. Não entendo nada deste assunto daí não saber distinguir uma Mangueira de uma Jaboticabeira. Mas a árvore é enorme e pelo seu tamanho deve ter uns 100 anos ou mais. Testemunha do tempo, silenciosa e dançante à música do vento, balança suave exalando um perfume mato-concreto num convite a sua alma desvendar. Chego mais perto estendo os braços pra sua energia roubar. Fecho os olhos e sinto dentro dela estar. São várias portas, sua matrix. Abro a primeira...livros e mais livros sem identificação. Curioso folheio o primeiro: é um pássaro com uma semente no bico e seu nome "Caminho Suave". Deduzo que ele protagonizou a vida da minha hospedeira. Viro a página nuvens e muita água, a matéria-prima, componente vital. Mais uma e um enorme conversor cheio de fórmulas com um sinal de igual e ao seu lado a razão, filtra o ar retirando as impurezas transformando-as em outro componente vital e binário o O2. O binômio da vida Hidrogênio e Oxigênio. Última página, um triângulo. Em cada vértice uma letra. No de cima a letra "H" e os dois de baixo a letra "O" .Estou na fábrica e não é humana. Como a vida é simples dois componentes num triângulo. A simplicidade é mesquinha. Saio e abro a segunda porta. Um projetor, uma tela e uma cadeira de diretor. Nenhum botão nenhuma tomada. Como ligar? Sento, um filme começa a rolar não há letreiros nem sons imagens em preto e branco. O pássaro do livro, reconheço, está a brincar solitário com a semente que insiste seu bico deixar. Cansado das manobras em fim desiste. Sai de cena. Um zoom amplifica a visão daquele grão que no chão vem repousar. A terra em forma de útero faz a semente gozar. "Fecundus et nostruns". Desabraço aquele tronco prevendo onde a imaginação iria me levar. Ela é repetitiva e cáustica. Me conduz me sorve e não para. Dou a volta... vejo a árvore se afastar.
Do outro lado da calçada, já no 1020, uma jovem cigana, sei por causa dos trajes, vem ao meu encontro. Tenho pressentimentos e me incomodam. Tento disfarçar o olhar e andar mais depressa dificultando o seu acesso. Não sei negar. A negação é de difícil aprendizado. Como negar um apêlo ou solicitação humana? Mas nego a mim mesmo, como é fácil! Puro engano, passou por mim sem se quer me notar. Olho o relógio, sete e meia, gente humilde com pressa pro relógio marcar, são como eu, compulsórios no andar. Observo essa gente operária que logo cedo varre e lava a calçada onde a vida vai passar. O trânsito se avoluma, jatos sobre minha cabeça, ruído infernal, foram apenas 30 míseros minutos de paz e agora jaz o silêncio que me seguia. O andar fica mais denso não consigo observar minhas pernas se desentendem na direção do caminhar. Reparo que uma é mais lenta que a outra, como numa competição quem chega por último vence! Adoro esta parte, sinal que devo parar. A transitofrenia inicia... eu jogo a toalha, vencido. Minha andança são descansos sucessivos seguidos por derrotas e vitórias. Como é eterno o descanso!
Olho para o número do prédio, 1201, faço as contas já andei 500 metros sou do 701. Vitória, vitória...paro pra comemorar. O corpo agradece. Faço alguns exercícios respiratórios tragando o cigarro com o nariz vedado pra ver o quanto dele consigo queimar. Suicídio!, penso é o anteprojeto da vida. Aquele que não dá certo. Me engasgo com o sorriso de uma menina com uniforme escolar fita-me curiosa do meu jeito de fumar. Interrompo o exercício com sua voz aguda e estridente:
- Vai se matar!
- Andei 500 metros, uma luta vou te contar, não pisei em merda por que sei observar, atravessei caminhos sem ninguém atropelar, construí uma vida e... não é este fumo que vai me levar!!! Sua observação, está sim, ceifa, suga e retira o que me resta do fio vital.
A expressão da garota diante da resposta inesperada e confusa enrubreceu seu rosto jovem tal qual a carne macia de uma melancia. Meu lado cruel e sarcástico geralmente se exibe quando a expressão verbal é insuficiente. A comunicação entre os humanos deveria ser feita através da poesia, só os sensíveis se comunicariam. Pro resto basta o silêncio.
Depois de um descanso filosófico e merecido dou conta que estou parado em frente a uma casa, 1302, com 4 carros na garagem e um pedinte batendo palmas. Fico ali parado observando, não sei porque, mas a cena é diferente, já que o mendigo está com meia bunda de fora. Insiste nas palmas, e ninguém aparece. Deduzo que a família daquela casa tenha estabelecido com os parentes um código de acesso que o moribundo desconhece.
Só um louco acha-se! Penso no pedaço de louco que há em mim. Talvez a loucura seja relativa. Qual juízo real pode avaliá-la? Quais as suas dimensões, não de medidas mas de abrangência. A loucura é solitária. Nela se revela expondo-se. Talvez seja uma fábrica produzindo desejos que contrariam as especificações do produto. A normalidade é louca e ser é uma loucura. Olhando aquele homem, bunda de fora, percebo a diferença. Que loucura pode haver num louco. A normalidade é apenas uma transparência. A loucura , esta sim é absoluta e real. Tornar-se ser é abominar a normalidade. Deixar fluir lá do fundo todo antônimo que me tornei. Sorver todos os desejos...esvaziá-los. Que imensidão de satisfação há neste estado. Só agora que percebi. Transgredir... aprender é preciso.
Viro a esquina, cheguei, finalmente, naquela rua pequenininha, que há no meu bairro, uma vila, construída como um pedaço cenográfico das casas da Normandia no coração de Moema. São todas iguais, com muitas flores e árvores. Paro, me acomodo num banco de ferro, também herdado de lá. Os telhados ,em bico, aguardam pacientemente, as nevascas que nunca ocorrerão. O arquiteto foi capaz de transferir a cenografia de lá mas foi incapaz de reproduzir o clima. Que ligação há no homem com sua arquitetura natal? Talvez seja o medo do desconhecido ou um processo cultural nativo. Só sei que ainda vivo, sinto no ar o perfume do diesel porque as máquinas também amanhecem ,dão o ritmo, indicando que devo voltar. Levanto e me espanto com o quanto de vida há nas calçadas!
Amor, Amizade, Coração... Meu vírus vital!