Ouve-se com freqüência alguém dizer algo como: foi por culpa dele que entrei nesta “fria”, ou: é por causa dela que ainda estou nesta empresa, ou ainda: eles são responsáveis por não ter dado certo. Frases como estas são ditas pela mulher infeliz, pelo homem frustrado, ou pelo profissional descontente, e estas frases surgem como resultado de fatos passados nos lares, em um grupo de amigos, em uma associação, entre casais, enfim, basta que haja o eu e o outro, é suficiente o convívio e elas são ou serão ditas um dia...
Enquanto dura uma convivência algo muito comum pode ocorrer: a permissividade. A princípio a pessoa nem se dá conta. Com o passar do tempo, ela descobre, muito vagamente, que está satisfazendo, mas não está satisfeita, muito pelo contrário. E, só bem mais tarde, tem certeza, quando o que era apenas uma mancha, começa a doer a ponto de transformar-se em ferida. A dor, antes invasora sutil, é agora, a “dona do pedaço". E nesta fase, as frases são colocadas para fora, como algo que estava engasgado, duro de engolir. Elas se repetem, a cada diálogo ou monólogo. Sim, porque quando não há o outropara ouvir, o ouvinte é o eu mesmo que as profere.
A ferida está aberta, dói, e só há duas saídas: recusar-se a sair do cais, deixar-se consumir, entregar-se à dor, capitular...Ou: refletir, repensar, abrir-se para a possibilidade de ser o próprio curador, encontrar a saída do labirinto, livrar-se das algemas. É na segunda escolha que o significado das cartas do baralho torna-se claro. É preciso coragem para ir em frente. É na reflexão calma, no assumir sem barreiras, na vontade determinada de ver as “figuras” e entender o que significam, apesar da ferida doendo (e é bom deixar doer), que brota a descoberta. Sim, a constatação de que ninguém tem o poder de nos ferir, sequer arranhar, sem que o permitamos. É aí, neste contato íntimo, amoroso e compreensivo consigo mesmo que se encontra o caminho, que a âncora é solta: a mulher reconhece que não foi por culpa dele que ela “entrou em uma fria”, mas que sua permissão (até mesmo inconsciente) e também omissão, claro, levaram-na àquela situação; o homem descobre que não é por causa dela que permanece em uma empresa que o escraviza, humilha e faz pouco caso de sua competência, mas sim, por seu servilismo, sua permissividade, ou até mesmo por seu comodismo; o outro, o profissional descontente, acorda para o fato de que, estar atrás de uma longa mesa, vestindo uma toga de juiz e exercendo um papel que ele detesta, não é responsabilidade dos pais, muitas vezes desejando ver um sonho deles realizado através do filho, mas unicamente sua, quando permitiu que seu sonho de menino de ser um piloto de corrida nos circuitos famosos do mundo, fosse sufocado pela vontade predominante dos pais.
Reflitam agora, lendo a letra desta canção da autoria de Saens Saint e Altay Veloso, cantada por Zizi Possi:
 
Renascer
Largar deste cais, ir sem direção
Seguir os ventos que clamam por mim
Tecer minhas teias com minhas mãos
Sugar das entranhas desse chão
Meu fim
Digladiar com os dois de mim
Ser o São Jorge do meu dragão
Dividir meus segredos com a noite
Minhas verdades com os céus
Trilhar as estradas que não trilhei
Romper as portas trancadas por mim
E assim minhas mãos saberão dos meus pés
E assim renascer, e assim renascer.
 
 
Dói passar por este processo reflexivo. Às vezes, é só um analgésico...E volta-se ao ponto de partida, tem-se uma recaída e recomeça a ladainha: tudo por culpa dela...Tudo por causa dele...Tudo é responsabilidade deles. Mas... Uma vez com a certeza de que houve realmente uma entrega ao outro do espaço e território, uma marginalização do próprio eu, umapermissão, a ferida começa seu processo de cicatrização. E que alívio! Como é bom o bem estar de estar de bem consigo mesmo! Só tem uma coisa: não pode haver transferência de uma sensação doente para outra crônica, isto seria desenvolver daí por diante uma situação irmã gêmea da outra, uma inimiga mortal: culpar-se a si mesmo. Afinal de contas, quando aconteceu, cada qual, o eu e o outro agiu do seu jeito, deu o que tinha e recebeu o que pediu. E já passou. Ainda bem!
 
Renasça!