A Sra. Joaquina de Vilalva - óleo de Tomaz Pelayo


Hoje vamos recordar o fleumático Manuel, ouvindo a Mariana Vidinha.


Insubstituível, como todas as figuras típicas das pequenas vilas, ele fez prolongar, pelo decurso inexorável dos tempos, as suas qualidades naqueles que sobrevieram, até ao último abencerragem.


Falecido há noventa e cinco anos, logicamente não o conheci. Nem o seu sucessor, o Rosário…


Mas conheci alguns dos que o continuaram no posto e revejo nesses a sua enternecida lembrança.


No plano inclinado da vida, um inverno arruinado pela velhice e pelo álcool, o mordomo D. Manuel continuava a ser, há cem anos, o porteiro inabalável e respeitado do Club Thyrsense, aparentemente incólume aos achaques.


Fato de jaquetão elegantemente talhado – dádiva de frequentador do Club – gravata preta sobre alvíssima camisa, meias pretas e sapatos de baile remontados, o Manuel perdera dois dos três deuses que lhe razoavam a existência: há anos apagara-se, enferma, a filha e, agora, também a mulher. Quando o Club era na casa Morais Miranda, ele carrejava de casa, ao colo, a filhinha paralítica e descarnada.


Ficou o deus etílico que, com o seu amplexo quente e cariciativo, o acolhia nas horas de solidão e abandono.


E contam os cronistas que, à medida que fora perdendo cada um dos idolatrados, o amor aos restantes crescia na proporção da perda.


Apesar da ferropeia do álcool incubo, não perdera a elegância, parecendo estar sempre aperaltado para uma soirée dançante.


Encostava-se à porta da sala de bilhar, ou ao tremó, sugerindo aos inexperientes (pixotes) a melhor forma de executar determinada carambola.


Todos os sócios do clube, bem como amigos e frequentadores, eram patrões do criado Manuel.


Tanto o mandavam ao Arcos comprar um maço de antoninos, como ao correio “saber se veio alguma coisa para mim”!

 

Quando o Club Thyrsense mudou para as instalações definitivas, fora-lhe concedida casa no sótão do Club, e lá vivia, até há pouco, na companhia da liliputiana mulher, trabalhadora ao jornal. Único lugar do mundo onde ele reinava, súbdito que era de dúzias de reizinhos! Por mais ordens que desse à esposa, a Toquinha, nunca o tiranete das águas-furtadas compensaria as centenas de «sim, senhor» com que assegurava infalível obediência aos clubistas.

O Manuel andava agora com um problema existencial. A direcção do Club tinha-o proibido de continuar a fazer barbas aos defuntos, actividade com que complementava os dois tostões diários de ordenado.


Um pequeno aumento de vencimento arrumaria de vez com a alegada incompatibilidade higiénica de rapar espumosos queixos a cadáveres, seguindo-se apresentação de copos de água ou cervejas aos janotas do Club.

 
Era este o criado, chamado mordomo Manuel, que há cem anos olhava pelos interesses do Club Thyrsense. Manuel Dias Vilela.

Sucedeu-lhe o “Rosário”, Joaquim Cardoso de Miranda, filho de pai incógnito e de Maria do Rosário. Já não era conhecido como “mordomo” ou “criado”, mas como “contínuo”!


Há cem anos era quem acendia os lampiões. Andava com a almotolia e com as coisas do petróleo na mão, a deitar petróleo, a acender, a fazer limpeza aos candeeiros que havia nas esquinas.


Há uma «bela» história passada no Club com este Rosário e com o padre Palmeiró a respeito de pecados.


Esta anedota não é original do padre Palmeiró, pois Camilo Castelo Branco refere-se a ela numa novela de 1882. Escreveu assim, o génio de Ceide: “Porque o seu sogro, acrescentou (a Sra. Joaquina de Vilalva), era um asno às direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum; e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres vendiam a bula e compravam a carne; e, juntando à heresia um anexim de limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos pecados que entram pela boca.”


Quando eu conseguir o necessário descaramento, narrarei com pormenores canalhas a desbragada laracha.

 
ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 06/10/2009
Reeditado em 14/11/2009
Código do texto: T1851174
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.