A vingança covarde.
A literatura psiquiátrica teria muito a estudar caso uma ex-vizinha de uns setenta anos, contasse alto e em bom som que criara cães e gato, gato preto. O personagem central desta história divide-se entre esse bichano e sua ex-dona, se é que podemos chamá-la assim. Segundo ela, ele tinha por hábito roubar as guloseimas feitas por ela. Mas nesse dia o animal passou dos limites toleráveis, quando a dona da casa assava uma suculenta carne para o almoço da família.
A dona dos cães e do gato saiu rapidamente da cozinha e deixou a peça bovina dentro da panela que repousava sobre o fogo. Ao retornar a cozinha, qual foi a sua surpresa? Encontrou o recipiente de alumínio destampado e a carne tinha sumido como de encanto. A pobre idosa correu até a porta de casa e olhou para cima do muro que circundava o imóvel. Qual foi a sua segunda surpresa? O felino degustava os dois quilos do tecido muscular do quadrúpede ruminante cavicórneo, sem nenhuma cerimônia, ele era o rei do almoço que não ficou pronto.
A velhinha achou aquilo uma ofensa a sua dignidade, ou pior, um furto ao patrimônio domestico com todos os agravantes penais que o judiciário poderia conhecer, afinal o músculo era parte do alimento da família, isso incluindo os cães e ele, o gato preto. O felino há muito estava deixando-a irritada, já não o olhava com amor, não o tinha mais apreço, existia sim, entre os dois, uma aversão velada, muda e secreta.
Sabemos que os animais são dotados de percepção e sabem quem realmente os considera ou não. O gato, talvez por ser um felino ele é bastante perspicaz, independente, parece que nasce sabendo das coisas, está longe de ser um animal ingênuo, como é o melhor amigo do homem o cachorro, tanto é verídico que as pessoas em sua flagrante maioria preferem os cães como seus parceiros, porque assim podem dominá-los conforme suas conveniências, ao contrário do gato que não admite a ser ordenado.
Pois bem, com esses ingredientes ficou formalizada uma guerra surda entre o racional e o irracional. A hoje septuagenária diante daquele desafio do inimigo, agora público, não podia deixar pelo barato, aquela ousadia do malandro, pois poderia até custar o próprio valor de sua saúde. Toda ação tem uma reação e a reação foi uma coisa “natural”, sem retoques, em pedra bruta sem direito a racionalidade, o ataque seria de acordo com o momento vivido, um momento irracional.
A professora aposentada agiu como se estivesse morando na selva fechada, sem conhecer civilização. Pediu a seu vizinho de muro que executasse o felídeo e desse a ela a carne do animal e a pele ficasse com ele (o vizinho), pois se visse a pelugem do bichano ficaria com remorsos.
O seu pedido foi realizado e assim ela sentiu-se vingada, aliviada, de alma lavada. Ao ouvir esta história, em pleno século XXI, pensei por um momento que estava vivendo nos períodos paleolítico e neolítico, pedra lascada e polida respectivamente, época em que se desrespeitava a vida animal e comportava-se como tal.
Hoje, passados anos, a dita senhora vingada, quando narra esse fato, seu comportamento não é de vitória, é de olhar triste, mas é aquele negócio! Para uma doença amarga...contando esse acontecimento a uma conhecida, ela a chamou de verme, pois em sua opinião, esse tipo de monstruosidade não se faz com nenhum ser vivo, ainda mais no jeito que foi, em um animal que não tem o poder de se defender.
É isso ai! Será que a consciência da professora aposentada a deixa dormir sossegada?