Alguém Lá Em Cima Está Ao Meu Lado

    Há certas épocas de nossas vidas em que somos tomados por algum desânimo sem explicação. Um sentimento que nos deixa para baixo sem saber por quê. Simplesmente temos a sensação de que tudo dá errado, de que nada está bom, e de que nossos esforços para qualquer que seja o ato, serão esforços em vão. Nos sentimos abandonados.
    Há outras vezes em que sabemos o motivo. Simplesmente fizemos algo do qual nos arrependemos depois. É o que chamamos de consciência.
    Minha falecida avó dizia que quando nos sentimos assim, é porque magoamos nosso anjo da guarda. É quando ele nos deixa em uma espécie de castigo por termos feito algo muito grave. É o momento em que nossa alma se sente só, e temos que arcar com as conseqüências de nossos atos. Quando ela me contou essa história, eu tinha nove anos. Hoje tenho trinta e dois, e ainda recordo. E mais do que isso, vejo que não era apenas uma metáfora, e sim algo real.
    Sou policial militar, e todos os dias encaro o crime e as mais diversas situações que nunca podia imaginar que fosse encarar. Quem iria imaginar que eu, um rapaz da zona sul do Rio de Janeiro, que cresci jogando Super Mário Bros em meu Nintendo, iria me tornar um policial? Acho que ninguém.
    Mas estou mal. Semana passada matei uma pessoa pela primeira vez. Foi durante uma incursão em um morro da zona norte. Havíamos recebido informações de que estaria chegando na comunidade, durante a madrugada, cerca de cem quilos de maconha. Chegamos cedo, ficamos à paisana no pé do morro, como sempre fazíamos. Era sábado. Mais tarde, haveria baile funk ali.
    Eu e meu parceiro, soldado Guido, aguardávamos as outras viaturas chegarem. Uma chuva fina começou a cair e nos escondemos debaixo do toldo de um barzinho. Já havíamos levado preso o dono deste mesmo bar. Era um traficantezinho de merda que ficava vendendo drogas para estudantes. Um estudante inconformado “deu” ele. O prendemos no ato! Odeio traficantes. Se antigamente eu os odiava, hoje os odeio ainda mais. Não em venham com essa que são seres humanos. Não me venham com esse papo de direitos humanos. Como diz o Wagner Montes: Direitos humanos para quem é humano direito. Os safados estão vendendo drogas para crianças! Como pode isso? A ganância e a ousadia chegaram a tal ponto que não há respeito. Dezenas de crianças são retiradas das ruas hoje, completamente “chapadas” de crack. Uma droga fortíssima! Não usam mais cola de sapateiro. Agora já começam no crack! Justamente uma droga que encurta a vida!
    Mas ainda estava para acontecer algo em minha vida. Algo que mudaria minha maneira de ver o mundo. De ver meus atos. Que me fez abandonar a polícia. Eu matei uma pessoa. Eu pensei em me matar.
    Subimos no morro às dez da noite. Fomos por um beco escuro que seguido sempre pela esquerda, sairíamos atrás da quadra onde estava acontecendo o baile funk. Éramos doze policiais nesse lado. Do outro subiriam mais trinta para cercar os traficantes que comemoravam a chegada do carregamento. Ouvi um barulho atrás do meu grupo. Quando me virei, notei que alguém nos observava. Foi o tempo de um clarão tomar conta do beco. Foi algo tão luminoso que minha vista ficou embaçada. Eram fogos de artifício. Algum fogueteiro do tráfico estava anunciando nossa chegada.
    Corri atrás dele.
    Era uma criança, e corria pelo beco como se fosse um camundongo fugindo do predador. Conhecia os becos com precisão, e eu atrás, tentando não o perder de vista no meio daquelas vielas fedidas de esgoto. Foi então que ele parou. Havia chegado à parte do morro que os moradores chamavam de Clarão. Não havia nada além. Só um precipício.
    Era mesmo uma criança. Devia ter uns treze, catorze anos. Muito magro, pálido e visivelmente chapado. Me encarou com um olhar de ódio que aos poucos foi se transformando em medo. Apontei meu fuzil para ele e o mandei soltar o resto dos fogos. Ele se negou. Me aproximei mais um pouco e fiz o pedido novamente. Ele sorriu. Aquilo começou a me irritar. Além de sorrir, ele disse que eu não podia fazer nada com ele. Era “de menor” e se eu o matasse ou batesse nele, os moradores iriam fazer protestos nas ruas, queimar ônibus...
    Impressionante! Uma criança sabendo precisamente como funciona as leis da favela. Eu me aproximei. Ele recuou. Aquela “marra” dele era só fachada. No fundo estava com medo e louco para correr para sua mãe. Se é que ele sabia aonde ela estava. Muitas dessas crianças fogem de casa pára usar drogas e ficam perdidas por aí. Toda vez que abro o jornal e vejo aquelas fotos de crianças que sumiram com quinze, dezesseis anos, sempre penso de má fé. Sempre acho que fugiram para ingressar no tráfico... posso até estar sendo cruel, mas quando a gente vê de perto as coisas. Quando a gente chega no fundo do poço e vê jovens manuseando armas de fogo maiores que eles próprios, passamos a evitar bons pensamentos e boas maneiras.
    O homem se aproximou de nós. O menino correu para os braços dele. Era seu pai.
    -Pode deixar, seu cana. Ele é meu filho. Vou levar ele para casa.-disse o homem que estava muito bêbado.
    Eu me aproximei e pedi os documentos dele. Ele se negou.
    -Compadre, deixa “nós” ir. O menino tá comigo. Vô levar ele pra casa e “nós” esquece esse negócio.- falou ele se virando e indo embora.
    Me aproximei e o cara puxou uma pistola.
    Eu gritei para que largasse a arma. Ele continuou andando. Eu continuei gritando.
    O menino começou a chorar.
    -Senhor, volte aqui! Solta a arma!-gritei.
    O homem continuava.
    Corri em sua direção. De supetão, ele se virou e apontou a pistola na minha direção.
    Num reflexo, atirei.
    A bala acertou em cheio o centro da testa do homem. O lado esquerdo do rosto do menino ficou completamente sujo de sangue. Ele começou a gritar.
    Soltei minha arma e fui na direção do menino. O segurei pelos braços magros, e, de repente, senti algo furando minha perna. O menino havia me furado com uma faquinha enferrujada. O empurrei com toda minha força. Ele se desequilibrou e caiu no precipício.
    Fui tomado pelo desespero. Nunca havia matado alguém na vida. Meu Deus, eu havia matado uma criança! O corpo do menino caiu sobre uma vala de esgoto. Me ajoelhei e senti enjôo. Não sabia o que fazer. Será que entenderiam como legítima defesa? Pensei em minha esposa, minha mãe. Pensei, por Deus, pensei até na alma de minha avó.
    Enfim, naquela noite fizemos a apreensão das drogas,e no dia seguinte, estávamos nos jornais. Cinco bandidos foram presos e mais dez ficaram feridos. Duas pessoas morreram na troca de tiros, uma delas uma criança que acabou caindo no abismo. O outro um bandido antigo que reagiu à uma revista.
    Cheguei em casa abalado. Um aperto no peito. Com certeza meu anjo havia me deixado. Mas eu sabia por quê. Eu havia tirado a vida de uma criança. Dali pra frente eu sonhava com a cena. Como num filme, tudo voltava aos meus pensamentos. Não estava conseguindo me concentrar. Eu só pensava naquilo. Eu havia tirado a vida de uma criança. Eu teria filhos. Como iria enfrentar a responsabilidade de ser pai? Como iria conviver com aquilo para sempre.
    Me fechei para o mundo. Fui afastado da polícia por ter diversos ataques de pânico. Às vezes o ar simplesmente me faltava. Tudo ficava turvo. Resolvi ir para casa. Mas as coisas pioraram. Em casa, sem ter o que fazer, os pensamentos me invadiam com mais intensidade.
    Não estava mais agüentando aquilo. E pensamentos ruins começaram a me tomar. Pensamentos suicidas.
    Minha avó também falava do rumo dos suicidas. Que iam para o inferno. Que eram considerados pecadores por desistirem da vida. Mas era a única forma de me livrar daquilo. Eu estava sufocando. E, além das lembranças da morte daquela criança, eu também persistia em pensar em me suicidar. Li na internet, certa vez, que a maioria das pessoas que se suicidam são pessoas ansiosas que acham que a única forma de se livrar dos sentimentos angustiantes é terminando com a própria vida. Não uma ansiedade comum, daquelas que dá friozinho na barriga e que roemos todas as unhas. Não! Uma ansiedade insuportável. E que eu estava me convencendo de pôr fim. Eu ia me suicidar. Eu iria magoar meu anjo da guarda.
    Foi então que, no dia seguinte, algo aconteceu.
    Eu estava no ônibus. Estava indo assinar a papelada para meu desligamento da corporação da P.M. Sentado no último banco do coletivo, eu continuava com meus pensamentos. Estava decidido a acabar com minha vida naquela noite. Iria até uma boate, depois iria beber todas. Por fim, iria me jogar das pedras da praia do Leme. Tinha horror à afogamento. Antes de pular, tomaria remédios para dormir. Tomaria vários, assim não sentira a água invadindo meus pulmões.
    Ao meu lado, havia uma mulher idosa. Tinha um ar calmo. E, apesar de idosa, tinha a pele bonita. Quase sem rugas. Sabe quando você vê uma mulher bonita e não consegue parar de olhá-la? Seus olhos parecem simplesmente se fixar nela, e você fica inventando coceiras no pescoço só para virar a cabeça e fitá-la novamente? Então. Eu estava assim com aquela senhora. Não estava à desejando. Não mesmo! Mas a fisionomia dela me dava calma. Por uns instantes me esqueci dos problemas. Mas foi só eu me lembrar de esquecer que os pensamentos voltaram.
    Pensei em minha esposa. Minha mãe, e nos filhos que não tive. Pensei em como seria me suicidar. O que aconteceria quando eu abrisse os olhos na outra vida. Se é que existiria outra vida. Como seria o inferno?
    A mulher se levantou. Puxou a “cigarra” do ônibus. Iria descer no próximo ponto. Antes de descer, enquanto o ônibus ainda parava. Ela me olhou nos olhos e disse: “Não faça isso, meu filho.Alguém lá em cima olha por você e te ama demais.”
    Gelei.
    Ela desceu e seguiu sumindo dentre os pedestres. Como assim? Como assim ela parecia saber o que eu planejava? Será que no meio de tantos pensamentos eu acabei os deixando falarem alto? O que aconteceu foi que tudo ficou calmo. Eu respirava melhor.
    Sei que isso está parecendo um depoimento daqueles programas de igrejas, aonde fiéis contam experiências sobre a presença Divina. Mas não tenho religião. Acredito em Deus e em anjos, só! É apenas uma forma de eu expressar tudo que passei. Do milagre em minha vida
    Quando contei à minha esposa o que eu estava passando ela me abraçou e chorou ao meu lado. Me senti amado. Senti que ela estaria do meu lado quando precisasse. A imagem daquela senhora não me sai da cabeça até hoje. Ela dizer que lá em cima alguém me amava me deu calma. Me transformei em alguém tranqüilo, confiante. E toda vez que tenho dúvidas, olho para o céu. Olho para cima. Lá em cima, seja minha avó, seja sei lá, meu anjo da guarda, ou até mesmo aquela moça do ônibus, por que não? Sei que pelo menos alguém de lá está me protegendo aqui.


                                          
  fim
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 04/10/2009
Código do texto: T1848443
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