Não era simples construir um carrinho de rolimã. Era preciso encontrar um pedaço de uma boa tábua lisa, sarrafo, um pedaço de couro, um parafuso grande com porca e as ferramentas, serrote, martelo, alguns pregos de determinados tamanhos e um arco de pua, na falta de uma furadeira, um luxo que não se podia encontrar tão facilmente naqueles tempos. E precisava haver alguém que soubesse construir, alguém que soubesse manejar bem essas ferramentas e tivesse a noção de como funciona um carrinho de rolimã. Não se pode esquecer de mencionar que era preciso ter umas três rolimãs grandes, algo difícil de se obter. Mas sempre tinha um amigo que tinha ganhado algumas a mais do irmão, ou sempre um irmão da gente que arrumava, de um jeito ou de outro.
Levou a manhã inteira e metade da tarde para construir o carrinho. Serrar a tábua, fazendo um bico na ponta, que vai ser a frente, desbastar a madeira para encaixar a rolimã, montar tudo, pregar, deixar firme, revisar todo o trabalho, fazer um pequeno teste, ver que está tudo perfeito. Agora é só usar o carrinho.
Um carrinho de rolimã não tem tração, não se puxa e nem empurra, para andar nele é necessário que haja a ajuda da gravidade, ou seja, uma rua com declive, uma descida. Minha casa ficava numa rua assim, uma leve descida, a casa ficava bem no meio. Estávamos prontos para usufruir dos prazeres de uma emocionante diversão, depois de tanto trabalho.
A gente leva o carrinho na parte alta da rua, senta nele, põe os pés na direção, o eixo dianteiro, e desce. Depois tem que subir carregando o carrinho, para uma nova descida. Assim fizemos e já findava a tarde, a gente descendo a rua várias vezes, e subindo para descer de novo. Não era uma corrida, não fazíamos isso, era um passeio, um delicioso e emocionante passeio. Mas havia um grave problema com essa modalidade de diversão, aliás, dois problemas: as rolimãs em atrito com o asfalto fazem muito barulho e moleques em cima de carrinho de rolimã em movimento fazem barulho tanto quanto a rolimã, às vezes mais barulho até. Então, em cada descida, era rrrrrrrrrrrr e urruuuuuuuuu eeeeeeee aaaaaaaaaaaaaaa! rrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!
O senhor Jacinto morava na segunda casa abaixo da minha. Era um senhor aposentado, que era visto, quando muito, sentado na varanda de sua casa, lendo alguma coisa ou dando uns breves passeios. Ele não gostou nem um pouco de tudo aquilo que acontecia naquele final de tarde, em frente de sua casa. Era aquele ehhhhhhhhhhhhhhhh rrrrrrrrrrrrrrrrrrrr ehhhhhhhh rrrrrrrrrr infernal. Quando voltávamos da descida, carregando os carrinhos, ralhava conosco, dizendo para parar com aquilo tudo que era um verdadeiro inferno de tirar a paz de qualquer um, que não tínhamos o direito de ficar fazendo barulho, que se quiséssemos brincar que fosse em outra rua, de preferência bem longe. Nós não respondíamos mal ao senhor Jacinto, não éramos assim malcriados. Dizíamos, prometíamos que era a última e que íamos brincar em outro lugar. Mas, chegando lá em cima da rua, nada de cumprir a promessa, já esquecida, e toca descer de novo a rua rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr ehhhhhhuuuuuuuuuaaaaaaaaa rrrrrrrrrrrrrrrrr.
Senhor Jacinto passou de impaciente a furioso e resolvemos dar um tempo, sentados lá embaixo na rua. De lá, vimos que ele saiu de sua casa e foi até a minha, tocou a campainha e chamou minha mãe. Não dava para ouvir nada que dizia, mas dava para imaginar pela gesticulação que não era coisa boa, apontava o dedo para minha mãe, sacudia os braços mostrando a rua, em cima e embaixo, e o que dizia a gente já sabia, reclamava de nós dois descendo a rua com aqueles carrinhos barulhentos várias vezes. Minha mãe, isso era sabido, não gostava muito de reclamações de seus filhos, principalmente quando os reclamantes tinham razão. Senhor Jacinto terminou sua ladainha e foi para sua casa, minha mãe deu uma olhada pela rua, procurando ver onde estávamos, sem sucesso, a gente já estava escondido, ainda que desse para observar tudo.
O jeito foi dar um tempo de meia hora ou quarenta minutos, até que pudesse ir para casa. Provavelmente minha mãe ou já tinha se acalmado ou esquecido da reclamação do senhor Jacinto. Então fomos para o portão de minha casa, encostamos os carrinhos na parede e sentamos ali na guia e ficamos a conversar. Não demorou muito e minha mãe saiu e, contrariando minhas expectativas, não tinha esquecido coisa alguma. Passou-me uma bronca sem tamanho, daquelas que é melhor não fazer cara feia e nem reclamar, mas ficar ouvindo tudo quietinho. Não sei ao certo o motivo, mas ela não se contentou com a bronca ou suspeitou que eu iria fazer de novo e ter novas reclamações, ela sempre era bastante prevenida, sobretudo tratando-se desse filho que não parava quieto. Então, sem mais nem menos, talvez num arroubo de irritação, pegou meu carrinho que estava encostado na parede e jogou na rua com tanta força que o carrinho foi bater bem na sarjeta, de tal modo que quebrou ao meio, do eixo dianteiro ao traseiro, sem nenhuma possibilidade de reparo. Eu arregalei os olhos e tive a intenção de abrir a boca, mas me contive, não ia ser eu que iria cutucar agora a velha onça com a vara curta. Minha mãe também ficou um tanto assustada com seu ímpeto, talvez não quisesse fazer isso, mas não controlou o impulso e fez, e agora o que foi feito, feito estava, ela não podia voltar atrás. Entrou em casa para continuar cuidando de suas ocupações.
Fiquei parado ali, com as mãos na cintura, olhando os destroços do carrinho de rolimã. Calculando bem, tinha sido uma manhã e parte da tarde de trabalho, fora as semanas de espera para conseguir as rolimãs, a madeira, as ferramentas e alguém para ajudar a construí-lo. Levei os destroços para o fundo do quintal e deixei lá, para ver o que podia fazer depois. Senhor Jacinto tinha visto tudo aquilo, mas não tripudiou, ficou também um tanto assustado com as consequências da veemência de suas reclamações.
Tudo bem! Sempre que eu falava assim, alguém ao lado sabia que não era verdade, que não estava tudo bem.
À noite, lá pelas vinte e duas horas, chegaram em casa os meus dois capangas preferidos, os moleques mais obedientes e discretos que pude arranjar. Chegaram e ficaram me esperando no portão. Eu desci e pedi para um deles disfarçadamente passar pela casa do senhor Jacinto, para ver se as luzes já estavam apagadas. Estavam. Saquei do bolso uma caixa de fósforos e duas bombinhas daquelas grandes, que soltávamos com um certo cuidado nas festas juninas. Entenderam por que precisaria dos dois. Diante da casa do senhor Jacinto, eu segurei as duas bombas com os pavios encostados um no outro, de modo que o segundo comparsa acendesse as duas ao mesmo tempo, enquanto o terceiro segurava a portinha da caixa de correspondência do senhor Jacinto. A gente dava àquilo um ar de operação terrorista, tudo tinha que estar bem treinado e ser executado o mais rápido possível. E assim foi. Acesas as duas bombas, foram lançadas para o interior da caixa de correspondência, de tal modo que deu tempo de corrermos até a esquina de baixo, esperando para ver a explosão. Deu para ouvir de lá. E ver. Cortou-me o coração quando percebi que voaram pelos ares pedaços de cartas que estavam lá dentro. Contornamos o quarteirão e descemos pela rua, como se nem estivéssemos ali na hora do ocorrido. Tive a pachorra de passar pela casa do senhor Jacinto, como quem estivesse só andando lá para baixo, e vi a caixa de correspondência aberta como uma flor, os pedaços de cartas espalhados pelo chão e algumas ainda dentro da caixa, chamuscadas.
Nunca mais vi o senhor Jacinto ali pela rua no pouco tempo em que ainda moramos ali. Vi uma vez uma caixa de correspondência nova, mais resistente do que a anterior.
O carrinho de rolimã não foi reconstruído. Vendi as rolimãs e nem lembro o que comprei com o dinheiro.




 
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 04/10/2009
Reeditado em 07/09/2021
Código do texto: T1848400
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