Bola de capotão. Os mais jovens não saberão que antes dela, jogávamos com as bolas de borracha ou plástico. Tinha até umas que eram mais pesadas, dava para conseguir chutes certeiros ao gol. A bola de capotão era feita de couro curtido e a câmara era feita de bexiga de boi. As deste tipo foram trazidas ao Brasil por Charles Miller e eram fabricadas na Inglaterra. Isso era em 1894. Em 1958, as bolas ainda eram feitas de couro, mas tinham câmara de ar de borracha. Mas em 1970, o ano do tricampeonato mundial da seleção brasileira, as bolas já tinham trinta e dois gomos, sendo vinte em forma de hexágono e doze em forma de pentágono. É dessa bola que se trata, a que chamávamos capotão, simplesmente para diferenciar das nossas bolas de borracha.
Uma bola dessa eu ganhei não sei por qual motivo e nem me lembro se me foi dada pelo meu irmão mais velho ou pelo meu pai. Era um presente e tanto, uma bola de verdade, que faria com nos sentíssemos verdadeiros profissionais. E com um presente desse não se brinca sozinho, a bola foi logo para a rua, muito bem recebida para as nossas peladas das belas tardes de verão.
O nosso campo de futebol era a rua. E as partidas que disputávamos eram chamadas de “golzinho”, porque não tinha goleiro e os gols eram pequenos, geralmente marcados por uma par de pedras ou tijolos dos dois lados do campo. Sempre havia dois times jogando e um ou dois esperando. Vira dois e acaba quatro, o time que perdia saía e entrava outro para disputar com o vencedor, que ficava em campo.
Tudo isso para explicar que essa balbúrdia feita por seis a oito moleques correndo atrás de uma bola, mais uns dez ou doze aguardando a vez do lado de fora, se dava ali na rua, que era calma, não passava por ela muitos carros, para falar verdade, nenhum. Mas era uma rua residencial, com as devidas casas construídas de lado a lado.
A casa do português ficava em frente ao local escolhido para as partidas, pois era o pedaço que era mais plano da rua. Os futuros craques da bola não gostavam muito de jogar em aclives e declives. Era uma casa modesta, bem construída, com um muro baixo, encimado por uma cerca de ferro. Tinha uma pequena área diante da porta de entrada e em frente, um pequeno quintal com as roseiras do português, que ocupava toda a área de terra que havia ali, sendo cimentado somente a passagem que dava do portão da rua para a porta da sala. Eram roseiras de tamanho médio, com grandes e lindas rosas vermelhas, diariamente cuidadas pelo zeloso português, orgulhoso de cultivá-las tão bem.
E, por esse motivo, por ser zeloso com suas rosas, o português, sempre que jogávamos ali, não ficava tranqüilo. Saía toda hora para ver se as roseiras estavam intactas, adivinhando o perigo de tantos moleques jogando uma partida de futebol, um arremedo de jogo, quase sem regras.
Eis que os temores do português se realizaram e, num lance mais afoito de um zagueiro, tentando evitar um gol mais que feito, chutou a bola diretamente nas roseiras, destruindo uma ou duas das belas rosas. Está bem, acho que foram umas três ou quatro.
Eu, que era o dono da bola, corri de imediato para resgatá-la. Mas o português já estava atento e, quando olhei, já estava com a bola, segurando-a contra o corpo com uma das mãos e a outra escondida. Olhei para os olhos deles, suplicando que me devolvesse, mas sem dizer uma palavra. Ele olhou nos meus olhos, desafiando-me dizer alguma coisa que lhe aumentasse ainda mais a cólera. Nessa batalha de olhares, ainda sem dizer palavra, avancei um passo, ele lançou-me um sorriso sarcástico e, tirando a outra mão de trás do corpo, vi que empunhava uma faca, dessas grandes de peixe, que parecia bastante nova e afiada. Meu olhar tentou um desespero, mas ainda no silêncio, um desespero de dizer qualquer coisa que não saiu. E depois mudou para a incredulidade do que ainda havia por vir. O português alargou ainda mais o sorriso sarcástico e rasgou a bola de capotão, ali bem diante dos meus olhos, que agora estavam arregalados, por ver destruída uma bola tão boa e tão jovem. E lançou para fora os pedaços dela, que foram apanhados pelos outros moleques, que murmuravam algo que eu nem pude ouvir. Estava de olhos fixos no português, sem esboçar nenhuma emoção, era só para ele ter certeza de que eu vira o que ele fizera, como quem diz “então é assim?”. Ele podia ter confiscado a bola e guardado por uma semana ou um mês. Poderia ter xingado nós todos, poderia ter ido devolver a bola à minha mãe, com todas as reclamações de praxe, eu ficaria de castigo, não poderia mais jogar bola na rua por um bom tempo, mas a minha bola, boa e tão jovem, estaria viva. Mas o português preferiu exorbitar sua irritação. Tinha que ter uma faca, tinha que ter apanhado a bola antes de mim, tinha que ter cortado a bola. Podia fazer tudo, mas escolheu o pior.
Ainda fiquei olhando o português por um tempo que beirava o interminável. E ele tentou me encarar, mas não conseguiu por muito tempo, virou as costas e entrou em sua casa, sem dizer nada.
Ainda era o meio da tarde, sentei ali na calçada, os outros brincando com o resto da bola e eu em silêncio. Dois amigos tentaram falar comigo, mas eu não dizia palavra, estava quieto, compenetrado, pensativo. Geralmente nós ficávamos brincando na rua até o fim da tarde, quanto, automaticamente, entrávamos em casa para o banho e o jantar. Depois disso, voltávamos para a rua, para outras brincadeiras ou simplesmente ficar jogando conversa fora. Era quando as meninas também saíam para ficarem de conversa ou olhando nossas brincadeiras.
Naquele dia demorei a sair e dois amigos foram me chamar. Achei ótimo que tivessem ido, pois eu ia precisar deles. E fui para a rua ainda com aquele ar enigmático no rosto. Eram noites de verão e a rua era tranquila, dava para ficar ali até umas onze horas da noite. Mas antes disso, olhando a casa do português, percebi pelas luzes apagadas que ele já fora dormir. Voltei rapidamente para dentro e voltei com dois baldes de plástico e com uma tesoura. Entreguei um a cada um de meus amigos e comecei a podar pacientemente as lindas rosas vermelhas do português, que eram colocadas no balde. Nenhuma rosa sobrou para contar a história, mas aquela noite ficou na história, porque todas as meninas da rua receberam uma rosa, algumas delas até duas.
Na manhã seguinte, estava sentado na calçada em frente a casa do português, que olhava para seu jardim destruído. Olhou para mim como quem acusasse de um crime horrendo. Eu só fiz olhar para ele e não dissemos uma palavra sequer.
Na justiça dos meninos estava tudo certo. Eu não tinha mais minha bola e demoraria até ganhar outra. Demorou o tempo que levou para o jardim do português brotar de novo.
Uma bola dessa eu ganhei não sei por qual motivo e nem me lembro se me foi dada pelo meu irmão mais velho ou pelo meu pai. Era um presente e tanto, uma bola de verdade, que faria com nos sentíssemos verdadeiros profissionais. E com um presente desse não se brinca sozinho, a bola foi logo para a rua, muito bem recebida para as nossas peladas das belas tardes de verão.
O nosso campo de futebol era a rua. E as partidas que disputávamos eram chamadas de “golzinho”, porque não tinha goleiro e os gols eram pequenos, geralmente marcados por uma par de pedras ou tijolos dos dois lados do campo. Sempre havia dois times jogando e um ou dois esperando. Vira dois e acaba quatro, o time que perdia saía e entrava outro para disputar com o vencedor, que ficava em campo.
Tudo isso para explicar que essa balbúrdia feita por seis a oito moleques correndo atrás de uma bola, mais uns dez ou doze aguardando a vez do lado de fora, se dava ali na rua, que era calma, não passava por ela muitos carros, para falar verdade, nenhum. Mas era uma rua residencial, com as devidas casas construídas de lado a lado.
A casa do português ficava em frente ao local escolhido para as partidas, pois era o pedaço que era mais plano da rua. Os futuros craques da bola não gostavam muito de jogar em aclives e declives. Era uma casa modesta, bem construída, com um muro baixo, encimado por uma cerca de ferro. Tinha uma pequena área diante da porta de entrada e em frente, um pequeno quintal com as roseiras do português, que ocupava toda a área de terra que havia ali, sendo cimentado somente a passagem que dava do portão da rua para a porta da sala. Eram roseiras de tamanho médio, com grandes e lindas rosas vermelhas, diariamente cuidadas pelo zeloso português, orgulhoso de cultivá-las tão bem.
E, por esse motivo, por ser zeloso com suas rosas, o português, sempre que jogávamos ali, não ficava tranqüilo. Saía toda hora para ver se as roseiras estavam intactas, adivinhando o perigo de tantos moleques jogando uma partida de futebol, um arremedo de jogo, quase sem regras.
Eis que os temores do português se realizaram e, num lance mais afoito de um zagueiro, tentando evitar um gol mais que feito, chutou a bola diretamente nas roseiras, destruindo uma ou duas das belas rosas. Está bem, acho que foram umas três ou quatro.
Eu, que era o dono da bola, corri de imediato para resgatá-la. Mas o português já estava atento e, quando olhei, já estava com a bola, segurando-a contra o corpo com uma das mãos e a outra escondida. Olhei para os olhos deles, suplicando que me devolvesse, mas sem dizer uma palavra. Ele olhou nos meus olhos, desafiando-me dizer alguma coisa que lhe aumentasse ainda mais a cólera. Nessa batalha de olhares, ainda sem dizer palavra, avancei um passo, ele lançou-me um sorriso sarcástico e, tirando a outra mão de trás do corpo, vi que empunhava uma faca, dessas grandes de peixe, que parecia bastante nova e afiada. Meu olhar tentou um desespero, mas ainda no silêncio, um desespero de dizer qualquer coisa que não saiu. E depois mudou para a incredulidade do que ainda havia por vir. O português alargou ainda mais o sorriso sarcástico e rasgou a bola de capotão, ali bem diante dos meus olhos, que agora estavam arregalados, por ver destruída uma bola tão boa e tão jovem. E lançou para fora os pedaços dela, que foram apanhados pelos outros moleques, que murmuravam algo que eu nem pude ouvir. Estava de olhos fixos no português, sem esboçar nenhuma emoção, era só para ele ter certeza de que eu vira o que ele fizera, como quem diz “então é assim?”. Ele podia ter confiscado a bola e guardado por uma semana ou um mês. Poderia ter xingado nós todos, poderia ter ido devolver a bola à minha mãe, com todas as reclamações de praxe, eu ficaria de castigo, não poderia mais jogar bola na rua por um bom tempo, mas a minha bola, boa e tão jovem, estaria viva. Mas o português preferiu exorbitar sua irritação. Tinha que ter uma faca, tinha que ter apanhado a bola antes de mim, tinha que ter cortado a bola. Podia fazer tudo, mas escolheu o pior.
Ainda fiquei olhando o português por um tempo que beirava o interminável. E ele tentou me encarar, mas não conseguiu por muito tempo, virou as costas e entrou em sua casa, sem dizer nada.
Ainda era o meio da tarde, sentei ali na calçada, os outros brincando com o resto da bola e eu em silêncio. Dois amigos tentaram falar comigo, mas eu não dizia palavra, estava quieto, compenetrado, pensativo. Geralmente nós ficávamos brincando na rua até o fim da tarde, quanto, automaticamente, entrávamos em casa para o banho e o jantar. Depois disso, voltávamos para a rua, para outras brincadeiras ou simplesmente ficar jogando conversa fora. Era quando as meninas também saíam para ficarem de conversa ou olhando nossas brincadeiras.
Naquele dia demorei a sair e dois amigos foram me chamar. Achei ótimo que tivessem ido, pois eu ia precisar deles. E fui para a rua ainda com aquele ar enigmático no rosto. Eram noites de verão e a rua era tranquila, dava para ficar ali até umas onze horas da noite. Mas antes disso, olhando a casa do português, percebi pelas luzes apagadas que ele já fora dormir. Voltei rapidamente para dentro e voltei com dois baldes de plástico e com uma tesoura. Entreguei um a cada um de meus amigos e comecei a podar pacientemente as lindas rosas vermelhas do português, que eram colocadas no balde. Nenhuma rosa sobrou para contar a história, mas aquela noite ficou na história, porque todas as meninas da rua receberam uma rosa, algumas delas até duas.
Na manhã seguinte, estava sentado na calçada em frente a casa do português, que olhava para seu jardim destruído. Olhou para mim como quem acusasse de um crime horrendo. Eu só fiz olhar para ele e não dissemos uma palavra sequer.
Na justiça dos meninos estava tudo certo. Eu não tinha mais minha bola e demoraria até ganhar outra. Demorou o tempo que levou para o jardim do português brotar de novo.