Crônica de um dia quebrado
Furar a onda do dia, chegar do lado de lá com os olhos vermelhos. Escutar as promessas e rir de si mesmo prá depois chorar um pouco, escondido atrás de um espelho. Pintar as paredes do quarto, colar estrelas no teto falso e esperar pela noite.
Comprar duas caixas de morango, uma para comer, outra para mofar na geladeira, comprar uva sem caroço prá comer sem pensar, prá comer sem parar.
Não parar prá não ter que pensar. Não pensar prá não se engasgar com o pensamento.
Abrir as janelas prá renovar o ar. Olhar a água borbulhar antes de tomar a vitamina C. Jogar a cabeça prá baixo e esperar que o sangue venha salvar. Esperar a face corar, o sinal abrir e atravessar a rua como quem atravessa um deserto. Lembrar um pouco da areia, lembrar do que não quer esquecer, esquecer do que não quer mais lembrar.
Comprar naftalina, comprar geléia de tangerina, comprar balas prá colorir os potes de vidro, prá colorir a casa, prá não ter que se colorir.
Preparar a refeição mais lenta, passar horas refogando o tempo, depois tomar chá com pastilha de menta, ligar o som e ouvir música prá não ter que ouvir nada, deixar o telefone tocar e se alongar, se alongar, se alongar.
Jogar fora as coisas quebradas, guardar um caco de cada prá quando quiser se cortar.
Comprar merthiolate, novalgina, dorilax. Se preparar prá quando a dor chegar.
Esquecer um pouco mais, chorar um pouco mais.
Lembrar de comprar tomate e manjericão prá por na salada e esperar, esperar, esperar.
Se deixar influenciar, se permitir errar. Escrever por linhas tortas, separar cada ló-gi-ca, ra-zão, pro-ce-di-men-to.
Exercitar o músculo coração. Amar sem pedir licença, sem férias nem recompensa.