O VOO DA LIBERDADE PARA A MORTE

Eles eram dois. Um casal muito feliz. Transpirava felicidade através de seus cantos; de seus folguedos e de sua algazarra. A alegre bizarria transcendia através das grades do seu cativeiro contagiando os donos da casa e, porque não, os visinhos e transeuntes. As crianças admiravam com a carinha cheia de felicidade ao vê-los em seu alegre convívio conjugal, trepando pelas telas acima ou voando de um poleiro para outro. Assustava-se o casal de passarinhos quando uma aproximação maior o fizesse enrugar o penacho da cabecinha eriçando as peninhas coloridas, ou se tinha que ameaçar com o biquinho recurvo o dedinho malandro que os quisesse tocar.

Eles eram felizes, sim, porque seus donos cuidavam-nos com extremo carinho. Sem que os bichinhos o entendessem, parece que sentiam os efeitos da limpeza da sua casinha, quando também, era trocada a água e reposto o alpiste.Uma coisa muito importante os pequenos artistas sentiam – seu malabarismo era valorizado pelos circunstantes do seu diminuto picadeiro.

Nenhuma felicidade, porém, é perfeita. Falta sempre algo que a complete. Em sua absoluta maioria esse “algo mais” não aparece na tela do entendimento. Por isso pelo menos um dos habitantes daquele cativeiro sentiu a necessidade de encontrar aquele elemento que faltava em sua felicidade. Talvez fosse o fascínio que sobre ele exerciam as árvores com sua verde folhagem lá fora; quem sabe, a própria grama molhada e reluzente que rodeava o cativeiro? Ou o espírito de aventura – a fuga pura e simples. Seria, talvez, a ânsia indomável pela liberdade?

Sabendo-se voar, seus passeios não iam além de alguns palmos quando voava de um poleiro para outro. Mal se sustinha no ar e já era obrigado a pousar.

Certamente foi esse desejo de constatar a existência da liberdade inerente a todos os seres vivos – desejo de independência – que o fez tomar trágica mas resoluta decisão: fugiria do cativeiro.

Durante dias e dias rodeou para lá e para cá os limites da tela. Sua busca não foi em vão. Uma pequena falha nas malhas deu-lhe a oportunidade que tanto procurara. Aumentando-a com seu bico forte, esgueirou-se pelo buraquinho indo dar sobre o tapete de grama curta e macia. Que maravilha! Sentia-se um rei, passeando com passinhos ainda desajeitados pelo gramado. Tão empolgado esta que nem sequer lembrou de convidar a companheira para participar de sua alegria de sentir-se em liberdade. Mergulhado em sua euforia, sequer notou a aproximação de sua dona que, vendo-o solto, tentou recuperá-lo, jogando um pano sobre ele à guisa de rede. O passarinho levou seu primeiro susto no gozo de sua liberdade, mas conseguiu libertar-se do pano batendo as asas e iniciando um vôo rasante indo parar nos galhos mais baixos de uma árvore próxima. Visinhos e curiosos não faltaram. Juntaram-se à desesperada dona, uns para atrapalhar, outros com a intenção real da ajuda na captura do pequeno fugitivo. Ainda mais assustado com o alvoroço criado, alçou vôo, experimentando suas fortes asinhas. A princípio voou na altura das casas.Encorajado, porém, quiçá pelo medo de perder novamente a conquista da sua liberdade, subiu mais alto. Aumentando os círculos, subiu mais e mais até dominar com a vista a amplitude do nada. O sol agonizava no ocaso.Sua luz mortiça iluminava lá no alto as peninhas coloridas do periquito. Seus captores ficaram estáticos e impotentes, acompanhando com o olhar os suaves movimentos do diminuto bailarino do ar ao sabor da brisa vespertina. Emitia alegres gritinhos como que a chamar a companheira para acompanhá-lo na sua aventura. Do sol só restava uma réstia da sua luminosidade. Dentro de minutos seria noite. Seria a primeira noite de sua independência... ou de sua desgraça. Voando em círculos sempre maiores foi o pequenino aventureiro afastando-se sempre mais até que desapareceu escondido entre as primeiras sombras da noite. Ninguém mais o viu nem ouviu. Dias depois da fuga alguém achou as peninhas coloridas que sobraram da ação de algum predador.

Não sabia esse pequeno e maravilhoso pássaro que sua espécie – a Galopsita – tornou-se tão e somente um enfeite de cativeiro. Nascido e criado neles, nada sabem da liberdade além de matar a sede e a fome com o alimento e a água que seus donos lhes servem na gaiola em potes próprios. Não aprenderam que “liberdade” para sua espécie é divertir cantando enquanto recebem seu salário em forma de alimento. Nem lhes disseram que eles não têm habilidade para procurar seu próprio alimento fora do cativeiro. É, em vez de desfrutar dos galhos verdinhos das árvores da floresta, o tosco pau seco que é o poleiro da sua gaiola. Seu consolo é que dentro desse cativeiro está livre dos inúmeros predadores, mas prisioneiro do maior predador do planeta – o homem.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 03/10/2009
Código do texto: T1845403
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