Literatura no corpo e na alma

 
Um dos momentos que mais me encantou  durante o 3º Seminário do Programa Prazer em Ler, foi o depoimento de Daniel Munduruku -Escritor indígena. Diretor presidente do INBRAPI-Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual, Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e Pesquisador do CNPq. –

No relato que segue, ele partilha sobre a superação de preconceito que vivenciou por ter crescido numa Aldeia indígena, estabelecendo relação do que viveu com a literatura, interagindo com o público presente; professores, escritores, coordenadores e técnicos pedagógicos.

 Cresci dentro da Aldeia Munduruku e aprendi que aos nove anos, menino nessa idade, é quase homem em formação, até chegar aos quinze anos, e viver seu momento de vida adulta. Pensou o pequeno índio.
Ele havia se apaixonado por uma menina da mesma idade, uma índia que morava na cidade. A india tinha um nome sintomático “Lindalva”, uma menina a qual despertava o desejo dos colegas da sua sala de aula, por ser realmente, linda e ainda por cima, atrante.

O menino, como estava em sua fase de “menino quase homem” (de acordo com a cultura indígena), resolveu se aproximar da garota e falou-lhe:

- Linda, quero falar com você!
 
-Pode falar!

Respondeu a índia.

-Aqui não, atrás da moita. Pode ser?

Linda achou normal ir conversar no local sugerido e atendeu ao pedido do colega.
Lá chegando, foi direto ao assunto:

-Eu queria dizer que eu te amo você, I love you Baby (sabia falar inglês e quis impressionar a menina).

E continuou:

-Tu quer namorar comigo?

Imediatamente, a índia respondeu-lhe:

-E tu acha que eu Linda, vou namorar com índio selvagem?

-Se quiser ser meu amigo não conte esta conversa a ninguém.
Ratificou a índia.

Desse dia em diante, Linda ia crescendo e o seu admirador, ia diminuindo a cada dia, sem auto estima, pois no dia seguinte, quando ele chegou na escola, não se falava em outra coisa.Todos zombavam dele pelo ocorrido.

No final de semana, voltou pra Aldeia. Lá, ninguém caçoava dele, pois os adultos deixam viver a adolescencia sem fazer intervenções por qualquer motivo. Observam o que está havendo, o comportamento dos meninos quase homens, e só depois, chamam a atenção.

Assim, um velho( o avô do menino) o chamou e o convidou para tomar banho no rio. Ele aceitou. Só que, o velho não o levou na realidade pra tomar banho e sim, pra conversar.Levou-o pra um local afastado, disse que ele sentasse numa pedra a margem do rio e disse-lhe:

- Escuta o que o rio tem pra te dizer!

O menino ficou surpreso, pois não sabia que o rio falava, e ficou tentando, por horas, escutar a voz do rio.

Seu avô se aproximou dele e perguntou-lhe:

- E aí meu neto, o rio já falou com você? O que o rio contou-lhe?

-Eu não ouvi nada, ele não falou-me.

Disse o índio, tristemente.

-O rio falou sim, você que não o ouviu. Você já viu o rio parar enquanto a árvore cai?

Dentro dele tem uma voz...

Se ele ficar chorando, parado, certamente, apodrecerá. Ninguém se banha em rio podre porque senão poderá adoecer, sua água não servirá. Você não se banharia mais nele, os peixes morreriam. Ninguém quer se divertir num rio podre e se ele precisa realizar o desejo de encontrar o grande rio... Nascente do Rio Patajó porque é para onde os índios vão.


Após esta conversa, compreendeu que deveria aprender com o rio, que na vida deveria seguir em frente, sempre renovando a esperança pra se chegar onde se deseja alcançar e que mesmo  em tropeços, não deveria se deixar abater, e assim como o rio, que percorre seu curso ainda que entre as pedras, ele sobrevive , chega inteiro e limpo, cheio de beleza e encanto ao grande rio...Também ele poderia, se não desistisse de lutar pelos seus sonhos.
 
Após esta interação, refletiu-se que a literatura não é só o que se escreve, logicamente.

A literatura está presente na oralidade, na ansestralidade do povo brasileiro, na manifestação do povo indígena, no canto, naquilo que ele acredita manifestado pelo corpo, como expressão literária.


O velho, mencionado no texto, é um observador, um grande leitor.

Os grupos indígenas não se acham maiores que a natureza, aprendem com ela.A natureza oferece elementos, para que o povo possa ser criativo com o que ela oferece e os rituais são tentativas de retribuir o que a natureza lhe oferece.Isso é literatura.

O velho (avô do menino) indígena, era um leitor observador de grande sensibilidade, criava metáforas (escutava a fala do rio), desenvolvia ao longo da vida a capacidade de interagir e se emocionar com as lições da natureza.

Isso também é literatura; a arte de construir a partir dos elementos naturais.


Quem lê e escreve deve ser bom observador, “pra aprender a ler o mundo”, como já dizia Paulo Freire. "Esse mundo dentro da gente fica melhor de ser escrito, quando sentimos onde mora a essência das coisas", conforme Daniel Munduruku.

Creio que temos muito o que aprender com os grupos indígenas, pois uma das coisas que aprecio no grupo munduruku ( comunidade indígena), é o olhar definido sobre a sorte;

Sorte nesta comunidade, é morrer velho, viver muito, para educar o espírito das crianças.O pai  ensina os meninos a pescar. A mãe ensina as meninas a falar com as plantas, sendo que o pai ensina para o corpo, por exemplo.

Viver a velhice em sua totalidade, viver cada momento intensamente.O velho indígena vive plenamente a sua maturidade, porque já viveu seu tempo de juventude antes e a criança, não pensa no que vai ser quando crescer, vive o seu tempo de ser criança.


Então, por que será que o índio quer morrer velho? Explico:

Porque o velho é que passa a tradição.

Pra finalizar, é bom que passemos a refletir também, sobre a dívida histórica que temos com estes grupos, rever a necessidade de respeitar a diversidade... Desmistificar estereótipos construídos e atribuídos a estas pessoas, pois é gente que pensa, que sente, e tem capacidade a ser desenvolvida igualmente a qualquer outro ser humano, e com uma vantagem;

Tem a literatura no corpo, no pensamento, na alma em suas diferentes expressões desde a infância.

 
 
 
 
 

Antonia Zilma
Enviado por Antonia Zilma em 01/10/2009
Reeditado em 14/09/2022
Código do texto: T1843055
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