Conversa de amigos

- ...E muito interessante

- Também acho.

- Olhe os detalhes...

- Estou vendo.

- E tem quem diga que não existe.

- Né não? Acho que são pessoas que não tem o que falar..

- Ou falam demais sem saber o que estão dizendo..

- Pode ser....

- Pode ser não, é. Eu sei muito bem o que estou dizendo.

- Se saber, então, confio em você.

- Agora veja, observe por outro ângulo.

- Como assim?

- Desse outro lado, seu velho bobo.

- Se começar a me destratar, não olho mais coisa nenhuma.

- Desculpa, eu não quis ofender, fui tomado por pura força de expresão.

- Tá desculpado.

- Então vamos brindar, peguemos nossas xícaras de chá e brindemos por mais uma descoberta. Em outros tempos seriam duas grandes de...

- Quanta coisa podemos nos lembrar, não? o salão da dona Necy, aquelas formosas mulheres de pernas de fora, perfumes vindos de ourtras partes do mundo, o jogo de cinuca, o pacará... Ali sim, ali sim divertíamos, jogavamos conversa fora...

- Quando não, chegávamos em casa com o colarinho da camisa em marca de batom, o lenço a exalar outros cheiros e as desculpas mais descabidas que tínhamos de arranjar...

- Lembra daquele dia, era um dia de chuva, se não me foge da lembrança, dia de Tiradentes, a gente a cortejar uma mulata novinha...

- Não posso lembrar! Por causa dessa diaba manceba que quase meu casamento se desfaz. Não lembra? A danada inventou de engravidar pensando em pegar-me pelo calcanhar?

- Mas, me diga, que danado é isso? Isso aqui, veja...Para mim é novidade...

- As coisas desses tempos tão modernas. Doidos tempos, isso sim.

- Não seja tão rabojento, velho ultrapassado. Você bem que gostava das inovações de outros tempos...

- Não comece, agora, você a me dizer desaforos. Em outro tempos...

- As inovações assustavam tal qual as inovações desses tempos, ou não?

- Não sei do que você está falando.

- Pois não lembras mais do surgimento da roupa de banho feminino?

- O tal maiô, que deixava a mostra as belas pernas?

- Esse era o de menos, refiro-me quando surgiu o de duas partes, o danado do biquini...

- Não é que é mesmo!!! Tinha o asa desta, o fio dental...

- Se era dental eu não sei, mas que era fio, isso vá lá, sei muito bem que era.

- Pronto, acho que o tempo está mudando. A vontade de espirrar já me faz cócegas no nariz.

- Sei o que é isso, compadre, vez por outra acontece comigo também. Uma coceira na gargante que só me falta sair tudo boca a fora, dá logo uma espirradeira, os olhos começam a ficarem avermelhados...

- Não exagera também. Isso parece coisa de comadre. É só uma mudançazinha de clima e pronto, passa logo, logo. Não quero que um simples mal estar de garganta atrapalhe nosso encontro. Veja, agora, com o tempo nublado...

- É mesmo, com o tempo nublado, parece outra coisa...

- E esse chá que não chega!!!Tanta modernidade e as pessoas tão desatenciosas. Já imaginou se o homem descobrisse novamente a fórmula da cordialidade...

- Para de de falar um pouco e escute, veja, escute...

- Finalmente, é para ver ou para escutar, decida-se!

- Faça o que quiser, contanto que faça alguma cosa, não fiquei aí parado como se fosse mosca morta ou busto erguido de algum imortal...

- Olha que te dou um peteleco...

- Dá coisa nenhuma

- Respeite os meus cabelos bancos, velho rabujento

- Cabelos? Não vejo cabelo nenhum. O que vejo é só uma careca coberta por um surrado boné...

- Não fale assim, falso amigo. Respeite meus cabelos brancos para que eu possa respeitar essa sua barriga de beberrão.

- Ei, que é isso? Assim também já é demais. Você sempre teve inveja porque eu sempre fui o destaque do nosso time, fosse ele de botão, da rua de nossas casas, da paróquia ou da escola.

- Também não precisa pegar tão pesado. Você se destacava, mas com minha bola. Eu sempre tinha a bola e você jogava porque eu deixava.

- Coisa nenhuma. A bola ser sua ainda vai, mas se não tivesse sua bola, vinha nossa criatividade. Então não se lembra das bolas de meia. Quantas vidraças quebramos, não.

- Mesmo, isso mesmo. A vidraça da dona Alaíde, lembra?

- E como eu ia de esquecer, por ela, minha mãe puxou-me a orelha até ficar de joelhos...

- Mas o caso foi engraçado... Lembro-me agora da D. Alaíde. Mulher magra, branca de cabelhos negros e caxeados, sempre amarrados com um colorido lenço. As saias sempre compridas, de cinto na cintura e blusa de tecido bordado. Nos pés, meias que vinham até os joelhos de chinelas de rabicho...

- Uma sofredora, isso sim. Ralhava de dia e de noite para criar os filhos. Fora abandonada pelo marido peixeiro, fugiu para a banda das praias com uma cabocla vizinha. Nunca mais dera notícias...

- E os filhos? Lembra-se? Homens e mulheres, todos e todas ainda pequenos... Lembro-me que minha vó juntava a lavagem para os porcos que ela criava. Vez por outra, uma trouxa de roupa que um dos filhos vinha pegar na cabeça...

- Por onde será que andam todos? Será ela ainda viva?

- Mas não me faça ri. Pensa que todo mundo é como nós? Ficamos para sementes. Esses vultos são vultos de nossa infância, todos já passaram, todos. Abrigam, agora, o vale dos esquecidos..

- Você e suas esquesitices. Ainda não é hora de falar nesse vale, ainda há tempo, temos muita vida para viver.

- E o chá que não chega. A hora me incomoda. Daqui a pouco já soaram as badaladas e os gritos começaram de novo...

- Veja, achei um novo ângulo, veja!!! Que interessante, parece que nos olha, que está a nos vigiar...

- E se for fruto do mal, alguma coisa mal, o olho de algum terrorista que descobriu as maldades que fazíamos, outrora, lembra?

- Não fale nisso agora. São segredos que prometemos levar para o túmulo, esqueceu?

- E você mais uma vez a falar em túmulo, vale dos esquecidos... Agorento, rasga mortalha...

- Silêncio, parece que algo vem se aproximando. Parece uma barca, escuto barulho de águas, depois de vento e tudo se confunde. Sinto o corpo cansado, o coração palpitando...

- Então sente mais aqui, faz sombra e está mais ventilado. Agora lembro-me do dia em que resolvemos pegar o gato branco de sua tia Rosário, amarrando-o pelo pescoço com um coldão de rede, lembra?

- E como havia de esquecer...

- Arrochamos tanto o pescoço do felino que pensávamos ter matado. E o medo do azar?Das sete vidas? E quando o danado se livrou e no desespero de fuga enganchou o pescoço no buraco da cozinha por onde escorria a água? O danado de branco ficou preto.

- Sorte nossa o seu Zé Pompeu ter chegado mesmo na hora. Salvou o

coitado do bichano e ainda nos librou de bela surra.

- E a descoberta dos ninhos?

- Pura maldade. Quebrávamos todos os ovos com nossos estinlingues.

- Agora lembro-se do dia em que resolvemos escrever cartas de amor . Entramos no quarto de minha irmã, roubamo-lhes folhas brancas, bordadas e perfumadas com rosas naturais, lembra? As folhas de carta que minha irmã tão bem guardava debaixo do colchão para ecrever ao namorado que havia de ter ido para a guerra. Fomos para o quintal de sua casa, debaixo das frondosas mangueiras e passamos a escrever versos de amor naquelas folhas tão alvas para a menina morena de nossos sonhos, aquela que sempre sentava na primeira fileira da classe, lembra?

- E como ia de me esquecer? Anos depois ela passou a ser minha esposa, sua comadre, esqueceu?

- Mas eu havia visto ela primeiro....

- Mas o coração dela bateu por mim...

- Nada disso, você que inventou de ter visto os joelhos dela e por isso ter marcado o ponto primeiro...

- Não diga isso, minha senhora era uma mulher distinta e sempre teve amor por mim....

- Coisa nenhuma. Os primeiros lábios que ela tocou foram os meus.

- Como?

- É isso mesmo. Combinamos de nunca te contar, era o nosso segredo. Você sempre foi mesmo muito bobo.

- É, fui tão bobo que enquanto você se tratava de pneumonia na Casa de Misericórdia, dormia em sua casa a vigiar sua família e meses depóis nasceu um menino que até hoje, aos olhos do povo é a minha cara. Como se explica isso?

- E é assim? É desse jeito que me joga na cara algo desse tipo? Traidor, verme, falso amigo. De hoje em diante não mais lhe dirigirei a palavra, para mim você morreu e esqueceram de enterrar...

- Então somos dois cadáveres a conversar, porque para mim, acontece o mesmo com sua pessoa.

- Depois de tantos anos de dedicação a uma amizade é isso que ganhamos...

- Pois, então... Plantamos ventos para colhermos tempestades, é a lei natural da vida...

- Lei natural da vida, canalha, traidor...

- Como?

-É isso que você ouviu...

-Pensei que tivesse caído-lhe a chapa. Fez tanto esforço para dizer esta palavra... Deixe-me cá com meus botões...

-Mas olhe, só mais uma vez, quando o sol fez combra...

-Isso mesmo, quando o sol fez sombra...