A grande caixa de trecos humana

Falar em saudade é triste. Os olhos lacrimejam, as mãos ficam frívolas, contorcidas, o coração disparado e um gosto diferente faz a boca mastigar, sentir o sabor, dar o goto, degustar lembranças arquivadas nos armários da memória por tanto tempo, tanto tempo empoeiradas.

Tudo sentido sem estar programado, automaticamente, respondendo a um comando que não se sabe ao certo vindo de onde; a causa primordial da motivação. Causa dor, desespero, rebuliço, insatisfação. Uma tormenta latente que aciona o frio da espinha, o suor da alma e o tempo da comoção, do deixa ver, do já faz tanto tempo que resolvi apagar da minha história...

Para outros não, nada disso, a saudade é bem diferente... Não causa dor nem alegria, é algo que acontece como acontece o nascer do sol a cada dia, a corrupção no meio político brasileiro, uma poeira jogada no ventilador e ventila, a saudade ventila o estado de ansiedade do ser, mas tem quem diga que não é nada, nada demais.

Falar de saudade é reviver, reverenciar o que já passou, dar boas gargalhadas, festejar, sentir na alma e pela alma regozijar o tempo da recordação, o saudosismo adormecido e acordado pela memória acionada. Uma maneira encontrada de manusear as fotos e os fatos registrados no subconsciente.

A saudade traz a certeza de tempos passados, de dias nublados, chuvosos ou quentes, de coisas inesperadas que marcaram, deixaram desenhadas na memória a certeza de um reencontro, mas que desarruma a ordem dos fatos para pintá-los de outras cores, outras motivações, de sentimentos que só quem sente pode narrar.

Saudade, aquela que está plantada dentro do peito e não se sabe como agir, resolver, entender na realidade o que se passa no interior. É amarga e provoca ânsia. Nascida das causas mal resolvidas, inesperadas. A saudade do amor que se foi, da viagem que não se fez, do que aconteceu sem está no roteiro. Intrusa, a que chega sem ser convidada, chega e se instala.

A saudade dos fatos passados, dos acontecimentos que marcaram vidas, entes queridos que já fizeram a grande viagem para o mundo da hipótese, das verdades religiosas, da pós vida. A saudade que nos faz enxergar o olhar de quem não nos olha mais; sentir o afago do abraço do corpo ausente, distante...

A saudade brasa queimando dentro do peito. Dos primeiros olhares de desejo pueris nos bancos escolares. As cartinhas perfumadas escritas em folhas coloridas e as juras eternas de amores que transpassarão a vida. A saudade dos rabiscos de corações nos troncos das árvores das praças públicas, da febre emotiva por ter de mudar de escola e nunca mais ver quem tanto te agrada os olhos...

É difícil falar daquilo que ficou para trás. Quando se pensa, o couro sua frio, os músculos enrijecem e a respiração fica mais lenta, mais densa. A vontade de reviver, reencontra e nos pegamos a folhear os velhos arquivos empoeirados da memória: nomes, imagens, atos, gestos... Tudo é lembrado como se fôssemos uma grande caixa de trecos...

Saudade dos amigos da infância, da escola, dos grupos da igreja... As festinhas surpresas, os piqueniques, as viagens intermináveis e as histórias narradas pelas professoras, tias, amigos mais velhos. Das brincadeiras de rodas e das horas dos recreios comemorativos.

Saudade das férias em família, das idas a praia, dos dias festivos e das noites de insônia dos acalantos da mãe... Dos dias ensolarados e das noites de lua, das cantorias das canções de ninar nas horas de sono forçado.

Saudade do primeiro amor, das brincadeiras com os amigos, das inimizades com os vizinhos... Da cozinha da casa da avó que sempre tinha um bolo feito naquela hora ou de um vidro de doce caseiro, ou no bolso da vó, um confeito, um chocolate, uma moeda, e se fosse o neto ou a neta do coração... Ai, ai, falar de saudade...

Saudade da saudade das coisas que não voltam mais. Da casa que nasceu, da briga com o irmão, da primeira irmã que casou...

Falar de saudade é fechar os olhos e não querer dirigir, é deixar-se a vontade e vaguear, abstrair-se do real e embrenhar-se pala coisa da emoção; é sentir-se frágil e deixar que a vida seja...

É sentir-se um imenso baú de coisas significativas e simplesmente sentir a fragrância que faz marejar os olhos...