A Criança Que Mora Em Nós
Existe uma norma social intrínseca ao amadurecimento, que age silenciosamente, conforme adentramos a vida adulta. Uma norma que nos afasta abruptamente da criança que um dia fomos, mas ela não morre: fica latente em algum lugar de nossa mente (ou alma), esperando ansiosa para novamente brincar!
O cotidiano nos reprime, nos restringe e até mesmo nos proíbe a manutenção de determinados hábitos, simples e singelos, que ainda ontem participavam da nossa vida. Como por exemplo, passar uma tarde na cama, comendo pipoca e assistindo à sessão da tarde. Hábitos estes que, de uma hora para outra, tornam-se inadequados para a nossa “faixa etária” e os ousados indivíduos que teimam em mantê-los são tachados pejorativamente de infantis.
Não sei como algo infantil pode ser ruim, mas neste caso passa a ser, graças ao paradigma social (de tendência altamente preconceituosa) Que torna infantil antônimo de adulto. Vejamos o significado literal da palavra infantil: “Que tem o caráter de criança: graça infantil. Pouco complicado, pueril, ingênuo”. Não sei quanto você, leitor, mas eu continuo sem entender como pode ser ruim manter vivo o lado infantil.
Novamente me vejo tentada a falar da “balança imaginária”— para tudo na vida é preciso acertar a dose, não passar do ponto. É sabido que a vida adulta nos exige uma série de compromissos e responsabilidade para as quais a maturidade se faz indispensável. Nestes momentos é bom deixar a “criança que mora em nos” tirar uma bela soneca, enquanto o adulto se descabela para dar conta de suas sérias incumbência.
Há quem diga que avô e avó servem para deseducar os netos, ou ainda que “é mais fácil ser avô do que pai”. Talvez realmente seja. Muitos pais seguem a linha de pensamento, um tanto ultrapassada, de que para educar é preciso manter um distanciamento hierárquico e autoritário em relação aos filhos e só ao se tornarem avós sentem-se livres da enorme responsabilidade do educar a moda antiga, permitindo-se até mesmo a peripécia de brincar!
Vale lembrar que na natureza é assim que os filhotes aprendem: brincando! Parece bem mais divertido, porém diversão e aprendizado podem até caminhar lado a lado, mas são coisas bem distintas. Até que a criança seja capaz desenvolver sua autonomia, cabe aos adultos estabelecer regras e valores. Com tamanha responsabilidade, torna-se ainda mais difícil àqueles que tem filhos manter ativo o seu próprio lado infantil.
Eu sou de uma geração que estuda cada vez mais, tem filhos cada vez menos, considera história em quadrinho parte importante da literatura e tem o videogame como parte integrante da mobília — mais um dos indispensáveis eletroeletrônicos domésticos.
Não há nada de errado em, nos momentos apropriados, cultivar a criança latente em cada um de nós. E muitos fazem isso sem sequer perceber: quando optam por assistir a um desenho, ao invés de um programa de cunho mais sério, quando realmente se divertem brincando com os filhos (seus ou de outros), quando se reúnem com amigos para uma boa partida de videogame, carteado ou um jogo de tabuleiro qualquer. E tem coisa mais saudável do que isso?
É bem provável que tenha, sim, e muitas! Mas uma coisa não exclui a outra. A diversão faz parte de uma vida saudável e parte mais importante do que muitos supõem, contribuindo para a saúde mental e, consequentemente, física também, já que o nosso corpo trabalha em tipo de “sistema fordista”, onde cada órgão tem sua função específica e o mau andamento de uma etapa afeta outra — tudo está interligado!
Sendo assim, por que não destinar parte do seu tempo, por menor que seja, para a sua criança interior? Na pior das hipóteses você esquecerá os problemas, rirá um bocado e perceberá que ainda possui o encanto pueril, brilhando em algum lugar de seu olhar adulto. E se lhe chamarem de infantil, convide-os para brincar! Mesmo que não admita, todo mundo tem saudades da criança que um dia foi...
*Publicada no Jornal Agora/Caderno Mulher Interativa/Set/2009.