CLARICE LISPECTOR (dedico a Dolce Vita)
"Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão completa com o não-eu que não haja mais um eu para morrer". BERNARD BERENSON, em epígrafe à obra A paixão segundo GH, de Clarice Lispector.
Parece-me que a escolha desta epígrafe resolve parte do mistério, não só da obra, mas de sua autora. Tive uma forte experiência com a leitura de A paixão segundo GH. Por mais que eu aqui tente, não poderei passar a experiência para o meu leitor. Mesmo porque parecerá a narrativa de um evento estudantil, ocorrido durante as aulas da disciplina Literatura Brasileira, ministrada por um professor também filólogo. Farei alguns arrodeios para chegar até Clarice.
O citado professor, jovem, muito jovem, recém formado, calmo, cara e corpo de seminarista. Era noivo de uma das alunas de outra turma. A moça só faltava triturá-lo de beijos e abraços e ele, “impávido colosso”, “deitado em berço esplêndido”. Para os mais curiosos, não se casaram. Até hoje ele é um solteirão convicto. Chega dessas informações de somenos importância.
Primeiro trabalho exigido pelo impávido: ler A paixão segundo GH, de dona Clarice Lispector. Na luminosidade dos meus vinte e um anos, tudo aquilo me pareceu estranho. Desde o título. Primeiro porque sempre tive medo da palavra paixão. Logo pensei que fosse um romance que contava uma história de fervente e irracional amor. Eu era do contra, do tipo que Millôr Fernandes bem caracterizou, dizendo algo assim: “Eu sou do contra antes mesmo de saber do que se trata”. Que bom achei isto dito por Millôr. Tem gente que tem autoridade para dizer qualquer coisa, ele é um. Amo você, Millôr.
Trabalho é trabalho e, irreverente, contestadora ou não, uma certeza eu tinha: deveria cumprir minha obrigação. Só que enquanto cumpro, crio problema. Sou uma contumaz criadora de problemas. Imagine se me desse bem com a Matemática.
Quando comprei o livro já coloquei defeito. Eu acreditava que livro bom era livro volumoso.Não tem alguém aí que disse que livro bom tem que ficar em pé?
Eu adorava ler na cama, apesar de também ler em carros e andando pelas ruas, arriscando-me a um atropelamento. Li o Varal de borboletras, de Carlos Britto, inteirinho, caminhando pelas ruas do centro de Aracaju. Este eu amo ler.
Deixei Clarice para a cama. Logo eu levei uma mulher pra a cama. Uma criatura problemática. E divina. Gostar é uma coisa, reconhecer é outra. Clarice, você me perdoe, mas ainda não me dou bem com sua palavra, mas o defeito é meu. Sei que a literatura, além de disciplina, é amor. Não consigo coisa alguma sem amar. Eu amo Castro Alves, por exemplo. Amo de paixão muitos poetas, inclusive mulheres: Cecília e Florbela são exemplos.
Comecei a leitura de Clarice. Penso que o professor falhou. Poderia antes nos despertar o amor pela autora, criar um clima. Não, ele enfiou a pobre da apaixonada de goela adentro dos alunos do Curso de Letras. Foi mal. Não conseguia avançar na leitura daquele mundo estranho. Aquela barata me infernizava. Sei que a psicologia tem explicações para isto. Tenho pavor às caranguejeiras também. Lendo a contragosto e pensando somente na poesia, em Lord Byron, em Álvares de Azevedo e todos os românticos das literaturas de língua portuguesa, inglesa e francesa. Quase me contamina o mal du siècle.
Não sonhei com a barata de Clarice, não corro de baratas. Tenho nojo, mas não medo. Eu não suportei aquele inseto esmagado na porta do guarda-roupas. Só não vomitei porque não tenho facilidade para tal. Li tudo. Li com raiva.Do professor. De Clarice. Da barata. Do existencialismo. Fiz o trabalho e afrontei o professor. Desenhei uma enorme boca vermelha em uma folha de papel ofício e em outra coloquei uma enorme língua vermelha também. A língua posta de tal sorte que ao abrir o trabalho ela se estivava nesse gesto de desprezo tão conhecido. Dei língua ao professor e à Clarice, e à barata. Coisas de estudante contestadora. Mas a nota foi boa. Só que ficou o trauma, não propriamente da obra, da autora, mas do professor e sua falta de didática. Perdão, professor, se algum dia ler este texto, porque sei que nele se identificará e sentirá remorsos por mim e por Clarice. A barata a gente mete a chinelada.
Não sei se escrevendo sobre isto alguma coisa da psique seja curada. Quem entender do assunto que se manisfeste.
Agradeço a colega de Recanto e de letras, Dolce Vita por me inspirar a produzir estas linhas.