O GATO ENTRE A VIDA E A MORTE

A avenida movimentada, carros nas duas mãos indo e vindo acelerados; motos, ônibus, caminhões... Era noite, a chuva torrencial de Janeiro havia à pouco cessado, o reflexo amarelado da luz do poste se estendia pelo asfalto e a calçada. De repente um gatinho, destes bichanos, de cor diferente do comum cinza rajado. Este era branco com manchas amarelas, tranqüilamente atravessando a avenida buscando alcançar a calçada do outro lado. Tão tranqüilo, que parecia estar caminhando sobre um telhado. Devia estar pensando numa gatinha ou num gatinho, tamanho a despreocupação no atravessar, parecendo esquecer que veículos iam e vinham na larga avenida.

Eu a observar aquela cena pela janela no segundo andar do prédio do nosso posto, em que me encontrava, confesso que fiquei aflito prevendo o que poderia acontecer com aquele animalzinho e eu sem poder fazer nada, pois ele estava à uns dez, quinze metros abaixo...Em questão de instantes desejei saber falar a língua dos bichos para poder gritar em miados, no caso, e avisar o bichano do risco que o mesmo corria...Senti-me impotente como se fosse alguém do outro lado da linha insinuando decididamente o abandono à vida.

Imaginei se aquele gato não estava fazendo aquilo premeditadamente, afinal acabara o ano de 2003, era o primeiro dia de 2004. Quem sabe havia sofrido tanto o ano que se encerrava a ponto de perder o entusiasmo para o ano que começava...?

Ou quem sabe já sentia que este mundo já não era habitável para ele... já se cansou dos muros que escalou, dos telhados que pulou, dos passarinhos que arrebatou, das “Wiskas”com que as madames o tratou, das proles que procriou, da vida que levou...? Queria evoluir, nascer num mundo em que não há rotinas para não decair sua auto-estima, num mundo onde a língua fosse uma só; a linguagem da poesia, a linguagem do amor...

Mas de repente, do outro lado, em sentido contrário, aparece um cão, destes que seus donos soltam à noite para fazer as necessidades caninas. O bichano mal esperou que o cão, três vezes maior que ele, o avistasse e já tratou de fugir em disparada. Do meio da avenida para o muro mais próximo, foi como se o ejetassem, alcançando e escalando o paredão numa velocidade única em questão de segundos, que o cão mal teve tempo de soltar um latido de marcação de território...

Assim, eu, mais aliviado daquela agonia de ver o animalzinho, prestes a ser tolhido por um veículo, refleti que se era sua intenção o abandono à vida pelas rodas de um automóvel e as presas caninas do outro lado, ou se na verdade ele estivesse simplesmente atravessando a avenida distraidamente, sem pensar na morte ou na vida, o instinto de sobrevivência o despertou e “falou” mais alto e ele são e salvo adentrou 2004 na perspectiva de mais um ano de vida felina e quem sabe feliz...

Doni Leite

01Janeiro2004

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