A ROTINA
Fazer tudo sempre igual, como aquela personagem da canção
do Chico, vai matando bem devagarinho a inquietação que
todo mundo tem de ter por dentro, por fora e por todos os
lados. Beijos com boca de hortelã, por mais gostosos que sejam, um
dia acabam enjoando.
“Chega de beijinhos em minha boca, mais do que os peixinhos
existentes no mar. Eu agora quero é mordida”, gritou alguém
desesperado em virtude da mesmice de todos os dias. Só que aí já era
tarde. Muitos anos haviam passado e marcado com ferro e ferrugem
os dias de existência possível. Agora já não adiantava mais. A solda do
medo de mudar as rotinas; a cola do deixa estar; assim como o grude
pegajoso do eu sou assim, tinham tomado conta da iniciativa. A iniciativa
estava morta de medo, definitivamente.
Tem gente que é mais ou menos assim. Adora uma rotinazinha
segura. É mais confortável e menos comprometedor. Penso que cada
um pode se machucar onde sentir mais tesão. Ninguém tem nada a ver
com isso. Porém, o fazedor de tudo sempre igual deve se isolar como
um ermitão; um monge budista no topo de uma montanha gelada para
não anular os outros que estão a sua volta. Se não for assim; se se
meter a casar, ter filhos, ter sua própria tribo, vai se dar mal. Um dia a
rotina começa a tocar em quem está mais próximo, e os dois começam
a fazer tudo igual na certeza de que um está absolutamente certo e o
outro acompanhando por amor. Este é o caso de Maria e João. Ela na
sua rotina preguiçosa; ele fazendo tudo por amor. Primeiro sublimou,
depois abriu mão em nome de alguma pretensa coisa boa, depois
desistiu e só não ficou igualzinho à Maria porque tinha esperança de
que um dia, quem sabe, ela mudasse o sabor dos beijos. Maria não
mudou e continuou com a mesma boca de café de sempre. Sentia
prazer em ser assim sem graça.
João já não beijava mais Maria, nem esperava que ela mudasse
depois de tantos séculos e séculos de convivência; foi murchando,
encolhendo e ficou fininho como um palito mastigado. Um dia Maria,
que há muito não prestava atenção em João, depois de tantos séculos
e séculos de rotina, olhou para ele e, gritando, reclamou.
“Levanta homem! Não seja assim tão derrotado! Você parece
que desistiu da vida! - exclamou três vezes. Você não tem mais ânimo
pra nada. Seus dias estão sendo todos iguais. Você não é mais aquele
“empreendedor inquieto e criativo” que eu conheci. Você está
acomodado nessa rotina, nesse seu cotidiano sem fim. Nós não saímos
mais para jantar; não vamos a um cinema, a um teatro; nem à praia a
gente vai mais. Você dorme cedo e acorda cedo, sempre à mesma
maldita hora, João! Por quê?... Por que você está assim? Eu quero
aquele meu João de volta. Aquele João inquieto que reclamava dos
meus beijos de hortelã, sempre iguais. Eu quero de volta aquele meu
João forte, duro e firme que me devorava de manhã e de noite
impiedosamente”.
João, meio cego com a pouca luz do quarto, tremia como vara
verde. Perplexo, estava ouvindo sua própria voz e suas próprias palavras
ditas há tantos séculos e séculos e que agora estavam saindo, como
uma maldição, pela boca de café da Maria. Sentindo a pressão arterial
prestes a estourar umas dezenas de pequenos vasos sangüíneos em
seu cérebro, João tentou um gesto de amor por Maria. Um trisco lento
com o canto esquerdo da boca imitava um sorriso; frio, de pedra,
enigmático. Maria, envergonhada, cobriu o rosto de João com um lenço
durante o velório sem perceber que era a autora daquele sorriso.