Questões existenciais

Uma típica tarde numa casa de família.

-É MEU!- gritou o caçula, puxando o caminhão de plástico para si. Franzia o cenho e mantinha um bico mimado no rosto.

-ME DÁ!- disse o ligeiramente mais velho, mas igualmente criança.

-Eu tô com mais vontade que você.- grunhiu o pequeno monstrinho.

-Eu tô com mil vezes mais vontade!

-Não tá!

-Tô sim!

-NÃÃÃÃOOO!- disse o menor e largou o brinquedo no chão, correndo de braços abertos para o sofá. Aos pulos ele fazia birra, ameaçando abrir o berreiro.

-A minha vontade é infinita!- disse o outro, ignorando o escândalo rotineiro e pegando o brinquedo que fora atirado de lado.

-Minha vontade é infinitamente maior!

-Mentira!

-É SIM! Duas vezes o infinito!

-Isso não existe!- choramingou o outro.- MÃE!

Da cozinha, a mãe suspirou e abaixou o fogo do arroz. Foi até a sala, contando até 10.

-Sim?

-O Dudu disse que tá com mais vontade do que eu de brincar. Ele disse que tinha duas vezes o infinito!

-Sim, querido, qual o problema?

A filha mais velha chegava da escola e pegou o meio da história.

-Ai mãe, é que infinito não acaba, ué.

-E daí?- perguntou Dudu, com cara de bravo. Os adultos sempre chegavam para complicar as coisas.

-Ah, filho. Se algo não tem fim, imagino que não seja possível aumentá-la, ter duas coisas que não acabam.

-Quer dizer que o infinito NUNCA acaba?- os pequenos se sentaram, admirados, no sofá, e a irmã mais velha também, cansada da escola.

-Sim.

-E como sabem onde ele começa?

-Eu... Acredito que ele não tenha fim, filho.

-E como sabem que ele não tem fim se não sabem onde fica o começo?

-Justamente por isso.-disse a garota, salvando a mãe.- Por isso não dá para dobrá-lo. Sua vontade infinita já é a maior de todas.

-Eu sabia!- comemorou o mais velho. Mas o mais novo não reparou. Tinha o olhar vago, distraído.

-Mãe, como será uma coisa que não tem começo, meio ou fim? Isso seria Deus? E de onde veio esse tal de infinito? Ele é que nem Deus? Para que ele serve? E se não tivesse fim, seria uma parede? O que tem por fora do infinito?

-Credo! Isso é que nem parar o tempo!

-É! Mas parar o tempo deve ser que nem o infinito!

-Por quê?

-Se eu parar o tempo, tudo para? E onde para? No lugar que alguém fez isso? Em todo o mundo? Em todo o infinito? E para quem parou, passa também? E se ela parar, fica tudo congelado? E se alguém parou nesse exato segundo, a gente nem percebeu, porque a pessoa retoma de onde parou. E se passamos uns mil séculos parados? Mãe, o que é tempo?

A irmã ficou boquiaberta, e seu irmão aproveitava a distração para brincar com o caminhão que era como um troféu.

A mãe deu de ombros, suspirou, ligou a televisão e voltou para a cozinha, desejando infinitamente poder parar o tempo.

Walrus
Enviado por Walrus em 29/09/2009
Código do texto: T1838689
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