O Rapé

Rapé deriva do francês “raper”, que é fumo raspado em pó, com a mistura de mais algumas plantas que temperam a gosto do cheirador. Vendo alguns comentários sobre o assunto descobri que era elegante cheirar a iguaria. E que vendiam em caixinhas de prata, de formato oval, por nome de boceta. Dentro ia um pedaço de fumo com um minúsculo ralador. Cheirar rapé, segundo os entendidos, pode causar dependência, pois o tabaco é derivado da Nicotiana tabacum, planta de onde é extraída a substância chamada nicotina, que vicia o organismo. Mas, culturalmente, pouco importa quando o prazer é o momento. Já dizia o porra-louca Lobão: “É melhor viver dez anos a mil, que mil anos a dez”.

Miltin, filho de Zé Piaba, é um rapaz velho, como é chamado aquele que alcança uma certa idade e ainda não se juntou a uma fêmea de beleza qualquer, para comer o feijão na mesma panela. Isto lá nas imediações de Pai Pedro, lugar que já foi o menor IDH de Minas Gerais, mas reluta bravamente contra as mazelas da natureza e da política tardia para mudar a situação.

Miltin morava com os pais e só via um chamego quando Nita Preta deixava uma vaguinha para ele na disputada agenda de amores. Há poucos dias, alguns acadêmicos de Montes Claros chegaram ao lugar para ações multidisciplinares. Entre cuidados, consultas e brincadeiras contaram um pouco da história da cidade de onde vinham, que tem uma praça que se chama dos Jatobás, onde deveria ser “o cemitério dos Jatobás”. Disseram que ali já foi considerado a capital mineira dos bordéis, nomeando cada uma das casas de deleite. Contava com minúcias como funcionava o atendimento.

Miltin, ouvindo aquilo no passado, torcia para alguém perguntar se restara alguma. A pergunta estava a ponto de saltar do interior, porém, a timidez e o medo da chacota lhe asfixiavam. Até que do meio dos próprios estudantes surge como um alívio do intestino grosso, quando a pressão para eliminar os rejeitos causa cólicas de cruzar as pernas e fazer caretas... Na hora da resposta do palestrante, o pai-peidense sentiu uma taquicardia tão severa que o coração bateu na garganta.

No outro dia, às 7h, estava no ônibus em direção a Montes Claros, e no meio da tarde descia na rodoviária. Cansado e mal arrumado, descansou numa pensão nas imediações, para ir no dia seguinte até a Praça de Esportes. Acostumado a vida da labuta na roça, às 04h estava de pé, tomando o táxi rumo ao sedento compromisso. Cheirando a desodorante altamente alcoólico de pouca fragrância, precisou tomar banho a pedido da mulher, que aguardava na cama. Miltin estava tão afoito que a cada gol que fazia, substituía a jogadora; às 10h já tinha ficado com meio plantel da casa... A satisfação foi tamanha que ele se sentiu quase completamente realizado. Só faltava cheirar o rapé que havia esquecido na mala, no quarto da pensão.

Com o acanhamento natural que possuía, não teve coragem de falar com a dama, que fumava nua ao seu lado, mas a vontade aumentava e o cheiro do rapé alucinava por abstinência. Quando não foi mais possível segurar Miltim, abriu o jogo:

- Oia, eu preciso falá uma coisa! Cê sabe que viço é trem do cão, e como ocê tem o seu de fumá, eu tem o meu de cherá...

Antes de concluir, a moça dá um sorriso e deixa o cliente à vontade:

- Ô cara, fica tranquilo bicho! Eu já cheirei muito, sacô? E consegui me libertar, mas se você tiver aí, pode mandar brasa!

- Não, eu num tem aqui não, o que eu truxe esqueci na pensão!

- Ô cara, você deve estar fissurado, hein!? Pior que eu não posso nem te ajudar muito, se ligar daqui, a civil vem na cola e derruba a casa! Mas você vira essa rua aqui embaixo, à esquerda, e quando chegar lá no mercado, liga para este número lá do orelhão... a pessoa vai trazer rapidinho.

Miltin saiu correndo com a sexualidade garantida, mas a boca salivando com a necessidade do rapé. Conforme informado, chegou e ligou. Menos de cinco minutos e lá estava a figura com o papelzinho.

- Nossa, mais aqui é poquim demais e muito caro! - reclamou Miltin.

- Irmão, isto aqui é da melhor qualidade, porra! .

- Moço, mais como eu vô cherá sem a boceta!

- O quê?! Tá me tirando, caipira? Vai na zona!

- Eu tava lá e a muié falô que eu vinhesse aqui, uai!

- Escuta aqui, mané, tu tá a fim de atrapalhar o meu lado, é ? Paga logo e some da minha frente, otário!

- Pago não moço, ess’preço pago de jeit’ninhum! Inda mais sem boceta...

- Quer saber de uma coisa, me dá meu pó aí e vai cheirar na b... da sua mãe, f.d.p!

O traficante sai rápido, da mesma maneira que chegou. Miltin, sem entender a intolerância, comenta solilóquio:

- Ai, ai, ai, quanto mais eu rezo mais assombração aparece! A boceta que eu chero é da minha mãe mesmo, uai! E tá cheiinha de rapé, lá na pensão...