ESAÚ

A noite toda Esaú cata papelão nas ruas da cidade. A carga do pequeno reboque já é alta, quando o dia amanhece e o sol aponta por sobre os arranha-céus. Suas pernas doem, pesam como chumbo. Ele para, compra um copo de café com leite e um pão com manteiga e mortadela numa padaria. Senta-se na calçada, rente a rua, para comer. Dali ele acompanha o vai e vem das pessoas nas calçadas e dos carros e ônibus nas ruas. A luz vermelha do semáforo, o som das buzinas, as placas e as vitrines das lojas...tudo isso o agrada, e ele se sente como um peixe no fundo azul do oceano. Apesar da miséria em que vive e da úlcera a devorar-lhe as entranhas, ele não se arrepende de ter vindo embora.

Quando foi mesmo que deixara a pequenina Juazeiro, lá no seu Ceará? Se não lhe falha a memória, em 1967, aos dezessete anos. Agora, quarenta e dois anos depois, ele não conseguiu realizar o sonho de riqueza que o fizera abandonar o Cariri e a família. Nunca mais voltou ali. O pai morreu em 1990, de ataque cardíaco, ao subir a colina do Horto, para rezar junto à estátua de Padre Cícero. Quando menino, em Juazeiro, Esaú ouvia esse pai contar que o avô Bartolomeu testemunhara, em 1889, aos dez anos de idade, na capela de Nossa Senhora das Dores, a hóstia que Padre Cícero dera a beata Maria de Araújo transformar-se no sangue de Jesus. Da mãe e dos irmãos não teve mais notícias. Decerto morreram também. A vida é assim mesmo, em determinado ponto desviam-se os caminhos e cada qual que siga o seu.

Ele terminou de beber o café com leite e de comer o pão, limpou a boca, dobrou e colocou o pequeno guardanapo de papel dentro do copinho descartável. Mas não se levantou. As pernas ainda lhe doíam. Ficou ali sentado, olhando a rua. Na Casa Lotérica ao lado da Padaria uma fila enorme se formara, era dia de aposta e a mega-sena estava acumulada em cinco milhões. Esaú observava as pessoas na fila e sabia que cada uma, sofrida ou não, tinha o seu sonho de riqueza, como ele o tivera um dia. Oxalá tivessem a sorte que ele não teve. Trabalhara como um condenado a vida toda e esta não lhe dera nada. Primeiro na construção civil, depois nas obras do metrô e mais tarde, nos anos de desemprego, como ajudante de pedreiro, franelinha, vendedor de sorvetes, algodão-doce, amendoim, pipoca, antena, canetas, bolão da sorte, até acabar, por fim, como catador de papelão, aos cinquenta e nove anos e doente. Lágrimas brotaram de seus olhos e ele se viu só e sem esperanças no mundo, impotente para um recomeço, uma guinada na vida.

Foi quando o homem de preto e cavanhaque grisalho, que Esaú pensou ser o escritor Paulo Coelho, cuja imagem vira milhões de vezes ao passar defronte às livrarias e bancas de revistas, saiu da Lotérica e, ao passar por si, deixara cair sem perceber, ao guardar a carteira no bolso da calça, o bilhete do jogo que registrara. Esaú gritou várias vezes, para avisá-lo, mas ele não ouviu e desapareceu na esquina seguinte. Esaú levantou-se o mais rápido que pode e suas pernas permitiram e pegou o bilhete no chão, montou em sua bicicleta e pedalou em direção ao ponto em que o homem sumira, mas fê-lo com dificuldade e lentidão, pelo cansaço e peso do reboque preso à sua bicicleta. Assim, quando conseguiu dobrar a esquina não conseguiu encontrar tal homem, por mais que o buscasse, por várias quadras, em meio à multidão. Desistiu afinal e foi para casa, em que se recolheu, após vender o papelão coletado, na Indústria de reciclagem de lixo.

Estava totalmente esgotado e o estômago doía-lhe: era a úlcera. Tomou banho, comeu umas bolachinhas de maisena, assistiu a novela das oito e foi deitar-se. De madrugada passou mal e morreu. Alguns dias depois, devido ao fedor, um dos vizinhos avisou a policia. O corpo putrefato de Esaú foi encaminhado ao IML e enterrado em seguida, como indigente. Em seu barraco, de zinco furado e madeirite empenada, no encosto de uma cadeira enferrujada ficou a camisa que ele vestira na véspera e no bolso desta, o bilhete premiado da mega-sena de cinco milhões de reais...