CULTURA POPULAR EM PRAÇA PÚBLICA

Estamos em Russas, próspera e simpática cidade localizada no interior do Estado do Ceará, a participar do II Encontro de Mestres do Mundo, um evento que reúne mestres de várias vertentes e fazeres. Para os organizadores (baseados na visão universal do fazer, do realizar, haurida lá na Idade Média européia), mestres são aquelas pessoas que, desprovidos de escolaridade, têm a chamada escola da vida, o saber acumulado pelas vivências. Estamos curtindo, no palco e nas barracas de exposição, o que de melhor se pôde ajuntar para o evento, segundo a Secretaria Estadual da Cultura. O palco-mestre reuniu, ontem, o repente, a cantoria popular local e nordestina; um espetáculo de dança indiana e um conjunto de guitarreiros paraenses, que entusiasmaram o público de cerca de mil pessoas, em praça pública. O som das guitarras propôs o ritmo quente da lambada e suas variantes. Um grupo divertiu-se muito, a ponto de pingar suor de seus rostos alegres. Havia modelos vivos com suas indumentárias vistosas bailando a mais não poder. A minha "pilcha gaúcha", indumentária típica do andarilho primitivo do berro do boi, desse Rio Grande de Deus (botas de cano alto, camisas de mangas longas, lenço vermelho e bombachas) empapou-se de alegrias. Um pouco antes, à tarde, o Povo gritara por três vezes o grito de guerra da torcida pentacampeã. Ronaldo, o fenômeno, consagrava-se perante a história do futebol. Estava absolvido, no coração do povo. Circula, dentre muitas, a literatura de cordel do poeta e cantador repentista Geraldo Amâncio, refrescando a memória do povo sobre o líder religioso Antonio Conselheiro, feito proscrito pelo governo central. Como muitos outros cordelistas já o fizeram, continua a denunciar, depois de mais de um século, o bárbaro massacre da Vila de Canudos, no Estado da Bahia, rememorando o regionalismo no final do século XIX. A luta é contínua para os idealistas do memorialismo, num país que lê muito pouco e que não tem memória viva. Resgatá-la é o permanente desafio. O Brasil de 500 anos respira sua identidade no Nordeste de Euclides da Cunha e seus sertões. Aqui, entre a chuva deste período do ano e os brincantes da farra do boi, o sertão é reinventado todos os dias. Não só no Natal, Folias do Divino e no carnaval. Professores, pesquisadores, poetas, músicos, cantores, alunos do ensino médio e superior revivem Canudos e se defrontam com a globalização. Um caboclinho de 15 anos, montado num jumento, tira um dos fones do "midia player" do ouvido e cochicha ao telefone celular. Depois, atravessa a rua e vai jogar "videogame" num "cyber café".

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2006 /15.

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