Crepusculário

Cai mais uma tarde de setembro sobre nosso triste bairro suburbano. Um belíssimo crepúsculo vai se despedindo melancolicamente sobre nossos telhados, alguns pássaros bailam no infinito, rodopiam entre antenas e fios telefônicos, cigarras cantam ao longe, mas a esse espetáculo ninguém assiste. Todos estamos ocupados com nossos pequenos problemas cotidianos. E sob os telhados, dentro de cada casa, homens e mulheres tecem de tédio as suas tardes de setembro. Lavemos as louças, liguemos a tevê, estiquemos nosso corpo vazio sobre o sofá e ouçamos a música aborrecedora do vizinho abafando a doce melodia da tarde.

O crepúsculo pede um poema que ninguém vai escrever. Estamos dispersos por uma centena de entretenimentos urbanos: músicas de rádio, programinhas de tevê, notícias de jornal. Erguemos muros ao redor de nós mesmos e ignoramos impunemente o cair de mais uma tarde. A cigarra, os pássaros, um belo sol sangrando no crepúsculo. A tudo ignoramos. Mas alguém, talvez uma moça, uma moça triste em meio a tantas moças, uma moça talvez vinda de longe, muito longe, de uma outra cidade, talvez do interior, gritou - basta! - E o mundo, assustado, cessou sua marcha. E o mundo se fez metáfora.

A moça está em seu quarto, talvez, na sala, folheando, com mãos ávidas, o Crepusculário de Pablo Neruda. A moça descobre nos versos do poeta um rio caudaloso. Límpido rio refletindo sua alma. A pele da moça se arrepia, sua alma de repente se reflete num espelho. A moça balbucia algumas palavras... "Minha alma é um carrossel vazio no crepúsculo"... Admira-se com a própria imagem refletida nos versos. A metáfora é sua chave, com ela penetra num universo que se antecipa à própria palavra. Com a metafóra mergulha na sua profundeza interior, descobre, num misto de pavor e paixão, que sua alma é, de fato, um carrossel vazio no crepúsculo. Um carrossel vazio, um carrossel com suas engrenagens, com seus cavalinhos solitários. Um carrossel sem risos, sem o histerismo de sua infância que passou, alegre, ao longe, no interior da Bahia, nos braços do pai. Agora é essa nostalgia, esse vento lá fora, esse vento soprando a noite por sobre as casas...

Sim, uma moça talvez, nessa tarde de setembro que se esgota, assistiu em Neruda o crepúsculo de sua doce alma e de seu triste bairro suburbano se desatando sobre os telhados do mundo. Talvez uma moça, entre tantas outras, assistiu o doce crepúsculo comigo.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 28/09/2009
Reeditado em 01/02/2010
Código do texto: T1836697
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