MAROTA
Para Maria Joana Evangelista e
seus filhos Gêgê e Aninha, humildes viventes pelas ruas de Campinas.
Nem sempre o riso é viver; às vezes, rimos do próprio sofrer! fmvieira
Marota --- a vocês que não sabem --- é a filha caçula de Tininha, enteada por sua vez de Belchior, a quem todos por aqui o chamam Brechó. Dos oito filhos da pobre velhinha, Marota é a única sobrevivente. O fio de um sorriso fino permanece nos seus lábios, levando-nos crer, zombar egoistamente de tudo à sua volta, conquanto esta crença possa induzir-nos a um falso julgamento. Marota é nova, mas, contraditoriamente, envelhecida precocemente. Seu rosto, embora juvenil no olhar, transparece já inúmeras rugas como a justificar o andar encurvado; mãos sobrepostas ao peito, apresentam-na ao modo de uma devotada servidora oriental. Do delicado papinho a lhe estufar o pescoço brando, tem-no, a crendice, por conta do esforço da moça assoprar constantemente os gravetos no fogãozinho de barro, o qual mantém fervente, em sua chapa, a panela de ferro fundido cozinhando incessante o caldo ralo de vegetais para os dois velhos pais. Os cabelos escorridos e fartos descem-lhe até a cintura, e, embora o desleixo não os tornem admiráveis, ainda assim carregam formosura a ponto de atrair a atenção de Coriolano, --- um dos raros visitantes --- a lhe enfeixar trouxinhas de flores de beldroega em meio a eles. Aliás, Coriolano bem poderia ser a chave do eterno sorriso de Marota. Não está ele, assim que pode, a insinuar-se para ela rumo à fonte? Brechó, por conta disso, admoestou-lhe pela ousadia, mas quem disse do manso buliçoso ligar? Coriolano é moço bom. Trabalhador, sério, têm boas intenções e sabe dançar como ninguém. Nos pagodes da redondeza faz a alegria das moçoilas. Daí, ser ele prendado para as condições do lugar. Foi o que disse para o velho padrasto de Marota que não mais o amolou. De resto, os pés descalços, moldados por dedos demasiadamente curtos e abertos, cujas unhas, rudes e quebradiças, deixam à mostra, entranhada sob elas, uma faixa escura de terra. São as outras particularidades a nos chamar atenção sobre a moça.
De todos os detalhes típicos de Marota, no entanto o que mais desperta atenção em sua pessoa é o riso perene e enigmático dessa Mona Lisa caipira. Do que andará Marota a sorrir? Da própria miséria e a de seus pais? A não ser isso, o que é que a própria vida lhe deu? O interesse incerto de Coriolano? A mãe, coitada, mal arrasta as perninhas ressequidas; tamanha é a fragilidade corporal que a custo mexe no fogão. As poucas atividades consistem ainda, com extremado sacrifício, pegar algum utensílio na cozinha e levá-lo penosamente até o jirau para a filha lavar, naturalmente quando a disposição assim a permite. Não tem mais ânimo. As doenças erodiram-na por dentro e por fora: tenham-na por uma casquinha de ser humano perambulando. O velho padrasto, por sua vez, até goza de melhor saúde; mesmo cingido pela idade avançada encontra tempo e disposição para sair com o cachorro pela mata do “vaca braba” em busca da carne de um distraído tatu, lhes fortalecendo a dieta. É sua atividade prazenteira. A outra, já por força da subsistência, consiste em lavrar alguns metros de chão em volta do rancho, onde se mete com poucas ramas de mandioca, alguns pés de quiabos e milho, plantas que requerem menos cuidados. Lavrar uma pequena horta nem pensar, o zelo superaria suas forças. No mais, passa seu tempo sobre a rede enrolando os cigarrinhos de palha. Sem camisa, veste a surrada calça de algodão suspensa pela correia de couro cru, expondo a barriga côncava e enrugada. Nos intervalos do sono, prazenteia-se mascando um naco de fumo; levanta a cabeça duas a três vezes no curso das horas, atirando a brejeira num canto determinado da salinha do rancho, umedecendo-o numa poça bicolor de baba negro amarelecida; esta, acumulada sobre a terra batida, nauseabunda, afugenta até as moscas que por sabedoria ou precaução, evitam bater asas naquele rumo.
Pode-se, pois, deduzir que a situação dos pais não é a inspiração do eterno sorriso de Marota.
E do que mais a moça poderia sorrir? Do jirau de varas à entrada do rancho, lambuzado em meio às sobras de mandioca da mísera refeição de ontem? Ou quem sabe, do cumbu pendurado numa das paredes à espera do velho padrasto usá-lo? Seria de Capucho, talvez? Não! O infeliz lulu não a alegraria tanto; os fios da pelagem do coitado, de tal forma trançados por carrapichos e sujeira, trava-o; a ossatura, por outro lado, exposta pela força da dieta imposta aos donos chegava de forma ainda mais rigorosa ao animal, expondo-o tristemente. Daí, Capucho não ser uma figura capaz de provocar um sorriso perene, antes de tudo, porém, causa pena. O gato “viludo” desanimado e as poucas galinhas a ciscarem ariscas, também não eram lá, dignos de graça.
Há muito, por conta das obrigações, Marota não brinca. Distam anos em que meros sabugos enrolados em trapos simulavam ingênuas bonequinhas, oferecendo à menina o luxo de amarrar nalguns, cabelos longos e resistentes provindos das espigas maduras, os quais, após passar a mão na língua, alisava-os placidamente a ponto de umedecê-los. Pequenas cabaças silvestres e frutos verdes da lobeira acabavam por constituir o lazer da pequena criatura. Amiguinhos, Marota não teve a sorte de tê-los. O ranchinho distante da vila e o casal de velhos não dispondo de amizades que os visitassem, condenou a menina a crescer só. Brechó, quando ia a cidade em busca de algum remédio, acontecendo no início do ano havia de ganhar uma folhinha de brinde; se esta por sorte, trouxesse a estampa de crianças, tudo bem, os olhinhos de Marota brilhavam contemplando-as; tocava-as enternecida, mostrando-lhes os sabugos efeminados e os demais brinquedos rústicos. E por força de sua imaginação solitária, timidamente as tomava pelas mãos e com elas percorriam as trilhas da fonte, onde, em meio às flores, desfilavam radiantes pelos campos.
O sorriso da menina de então, era bem outro.
De onde viria então, no decorrer dos anos, a estranha mudança? Em que conluio teria Marota se metido a ponto de moldar-lhe, em troca, esse ”rictus” misterioso que se assemelha tristonho? Por outro lado, qual altar de bem-aventuranças a teria ungido com esse riso de eterno contentamento?
Tais interrogativas, todavia, vão de encontro ao universo insondável da moça.
O riso perene, à luz daquela condição humana degradante, não deve ser encarado como uma insanidade? Uma máscara contra a agonia de viver?
Ou de outra forma: Marota não poderia ser feliz à sua maneira?
Vim a conhecê-la menino, por volta de 1957. A família morava na cercania de Goiânia, antiga Macambira, local ermo ainda, distante das modestas casinhas por lá existentes.
Na vida voltei a me deparar com esse enigmático sorriso nas faces de outras pessoas sofridas, em situação de penúria tal qual vivia Marota em companhia de seus pais, e, à vista de tais particularidades, exponho o meu insucesso por compreendê-las.
Fatalmente me levava a indagar inconformado: Por quê?
De todos os detalhes típicos de Marota, no entanto o que mais desperta atenção em sua pessoa é o riso perene e enigmático dessa Mona Lisa caipira. Do que andará Marota a sorrir? Da própria miséria e a de seus pais? A não ser isso, o que é que a própria vida lhe deu? O interesse incerto de Coriolano? A mãe, coitada, mal arrasta as perninhas ressequidas; tamanha é a fragilidade corporal que a custo mexe no fogão. As poucas atividades consistem ainda, com extremado sacrifício, pegar algum utensílio na cozinha e levá-lo penosamente até o jirau para a filha lavar, naturalmente quando a disposição assim a permite. Não tem mais ânimo. As doenças erodiram-na por dentro e por fora: tenham-na por uma casquinha de ser humano perambulando. O velho padrasto, por sua vez, até goza de melhor saúde; mesmo cingido pela idade avançada encontra tempo e disposição para sair com o cachorro pela mata do “vaca braba” em busca da carne de um distraído tatu, lhes fortalecendo a dieta. É sua atividade prazenteira. A outra, já por força da subsistência, consiste em lavrar alguns metros de chão em volta do rancho, onde se mete com poucas ramas de mandioca, alguns pés de quiabos e milho, plantas que requerem menos cuidados. Lavrar uma pequena horta nem pensar, o zelo superaria suas forças. No mais, passa seu tempo sobre a rede enrolando os cigarrinhos de palha. Sem camisa, veste a surrada calça de algodão suspensa pela correia de couro cru, expondo a barriga côncava e enrugada. Nos intervalos do sono, prazenteia-se mascando um naco de fumo; levanta a cabeça duas a três vezes no curso das horas, atirando a brejeira num canto determinado da salinha do rancho, umedecendo-o numa poça bicolor de baba negro amarelecida; esta, acumulada sobre a terra batida, nauseabunda, afugenta até as moscas que por sabedoria ou precaução, evitam bater asas naquele rumo.
Pode-se, pois, deduzir que a situação dos pais não é a inspiração do eterno sorriso de Marota.
E do que mais a moça poderia sorrir? Do jirau de varas à entrada do rancho, lambuzado em meio às sobras de mandioca da mísera refeição de ontem? Ou quem sabe, do cumbu pendurado numa das paredes à espera do velho padrasto usá-lo? Seria de Capucho, talvez? Não! O infeliz lulu não a alegraria tanto; os fios da pelagem do coitado, de tal forma trançados por carrapichos e sujeira, trava-o; a ossatura, por outro lado, exposta pela força da dieta imposta aos donos chegava de forma ainda mais rigorosa ao animal, expondo-o tristemente. Daí, Capucho não ser uma figura capaz de provocar um sorriso perene, antes de tudo, porém, causa pena. O gato “viludo” desanimado e as poucas galinhas a ciscarem ariscas, também não eram lá, dignos de graça.
Há muito, por conta das obrigações, Marota não brinca. Distam anos em que meros sabugos enrolados em trapos simulavam ingênuas bonequinhas, oferecendo à menina o luxo de amarrar nalguns, cabelos longos e resistentes provindos das espigas maduras, os quais, após passar a mão na língua, alisava-os placidamente a ponto de umedecê-los. Pequenas cabaças silvestres e frutos verdes da lobeira acabavam por constituir o lazer da pequena criatura. Amiguinhos, Marota não teve a sorte de tê-los. O ranchinho distante da vila e o casal de velhos não dispondo de amizades que os visitassem, condenou a menina a crescer só. Brechó, quando ia a cidade em busca de algum remédio, acontecendo no início do ano havia de ganhar uma folhinha de brinde; se esta por sorte, trouxesse a estampa de crianças, tudo bem, os olhinhos de Marota brilhavam contemplando-as; tocava-as enternecida, mostrando-lhes os sabugos efeminados e os demais brinquedos rústicos. E por força de sua imaginação solitária, timidamente as tomava pelas mãos e com elas percorriam as trilhas da fonte, onde, em meio às flores, desfilavam radiantes pelos campos.
O sorriso da menina de então, era bem outro.
De onde viria então, no decorrer dos anos, a estranha mudança? Em que conluio teria Marota se metido a ponto de moldar-lhe, em troca, esse ”rictus” misterioso que se assemelha tristonho? Por outro lado, qual altar de bem-aventuranças a teria ungido com esse riso de eterno contentamento?
Tais interrogativas, todavia, vão de encontro ao universo insondável da moça.
O riso perene, à luz daquela condição humana degradante, não deve ser encarado como uma insanidade? Uma máscara contra a agonia de viver?
Ou de outra forma: Marota não poderia ser feliz à sua maneira?
Vim a conhecê-la menino, por volta de 1957. A família morava na cercania de Goiânia, antiga Macambira, local ermo ainda, distante das modestas casinhas por lá existentes.
Na vida voltei a me deparar com esse enigmático sorriso nas faces de outras pessoas sofridas, em situação de penúria tal qual vivia Marota em companhia de seus pais, e, à vista de tais particularidades, exponho o meu insucesso por compreendê-las.
Fatalmente me levava a indagar inconformado: Por quê?