LARÁPIOS NA RUA FLORIDA

Diariamente eu e Ana circulávamos pela movimentadíssima Rua Florida, tanto pela manhã, quando saíamos para os nossos passeios diários por Buenos Aires, quanto à noite ao voltarmos para o hotel para jantar e novamente voltar ao burburinho na cidade que parece não dormir em muitos lugares. A quantidade de pessoas andando de um lado para o outro, formando um aglomerado de seres humanos em que a fumaça dos cigarros cobria a todos como se a rua estivesse pegando fogo, os tropeções inevitáveis entre os que iam e vinham, os carros cruzando a Florida e quase atropelando a multidão que não temia enfrentá-los ao atravessar as ruelas que por ela passavam, todo esse sufoco fazia do estreito espaço daquela famosa rua uma espécie de palco de boate, de tão cheia. Além dos que andavam para lá e para cá havia também os cambistas espertalhões ou empregados das casas de câmbio, funcionários de pequenos restaurantes populares e das lojas em derredor, todos fazendo aumentar ainda mais a aglomeração.

A multidão, por conseguinte, mesmo sem perceber mas dando bandeira facilitava a ação dos batedores de carteira que agem em Buenos Aires especialmente contra os turistas desavisados. Eles se imiscuem por entre o ruge-ruge desses lugares onde centenas de circunstantes se amontoam e, ágeis como gatunos tarimbados no seu "trabalho" malfadado e sujo, dão o golpe e passam o produto do furto para algum dos seus cúmplices para o caso de serem flagrados no ato e provarem que não foram eles os ladrões porque não estão com a carteira do roubado. Muitos agem desse modo porque fica mais fácil despistar e se fazer de inocente. Vimos algo assim acontecendo justamente na já tão famigerada Rua Florida, no começo da noite durante a semana em que lá estivemos. Como sempre, estava quase impossível caminhar por ali porque era a hora do rush na saída do expediente da grande maioria dos trabalhadores argentinos, e todos se apressavam nas suas respectivas direções indiferentes às trombadas que sempre ocorriam sem haver tempo para pedir desculpas. E é justamente nesses encontrões que muitas vezes acontecem os furtos.

Logo ouvimos uma turista gritando agarrando uma frágil e baixa mulher que olhava sorrateira a marota em sua direção sem dizer nada, segura a aparentando a maior tranquilidade: "devolva minha carteira, eu quero minha carteira, por favor devolva minha carteira!" Os gritos da turista ecoavam pelas imediações surpreendendo a todos. Mas, a exemplo dos demais passantes que procuravam distanciar-se do incidente, nós também direcionamos os olhos no rumo da gritaria e nos fomos, mas Ana, esperta e cuidadosa, mirou bem a portenha baixinha e magra que estava sendo acusada pela turista de tê-la roubado. E se ela tivesse mesmo roubado a turista? Não custava nada ser previdente. À medida que seguíamos nosso caminho para o hotel ainda escutávamos a turista gritando, mas não soubemos como tudo acabou, o desfecho nos ficou desconhecido. Naquele momento não vimos qualquer policial nas imediações(embora eles apareçam repentinamente para expulsar os camelôs que invariavelmente fazem ponto na Rua Florida quando anoitece) portanto não sabemos se aconteceu alguma prisão. Ficamos, contudo, com a pulga atrás da orelha no tocante à possibilidade de também nós estarmos sendo observados pelos larápios que rondam as multidões com o fito de furtar.

Eu sou meio descuidado com relação a esses assuntos práticos, mas Ana gravou muito bem as fuças da sem vergonha que fora agarrada pela turista naquela noite. Tanto que quando precisávamos passar pela Rua Florida ou por outros locais de grande aglomeração humana ela ficava atenta a qualquer movimento suspeito ao nosso lado, verificava se havia alguém na nossa cola e me puxava pelo braço com vistas a uma paradinha estratégiaca se desconfiava de estarmos sendo seguidos por batedores de carteira. E três dias depois, um tanto assustada mas procurando ficar tranquila, ela notou aquela endiabrada mulher ladra atrás de nós dois, nos seguindo. De braços dados com um homem e, um pouco mais atrás, fazendo parte do grupo de larápios como depois percebemos, uma jovem loura acompanhando-os disfarçadamente, lá vinha a maldita mulher disposta a nos furtar. Sim, ela estava de olho em nós e vinha em nosso encalço no intuito de fazer de conta que toparia em mim ou Ana, tentaria bater nossas carteira e pediria desculpa pelo encontrão, desaparecendo depois. "É ela! É ela!", sussurrou-me Ana ao ouvido puxando-me para o interior de uma loja. Então vi a malta que, sentindo-se descoberta quando paramos de brusco e deitamos sobre ela o olhar, passou para o outro lado da rua, sendo nesse instante que, então, descobrimos estarem os três acumpliciados no crime, juntos e preparados para mais um golpe. Os três entraram aos galopes no Burger King e desapareceram. Não fora a astúcia, os cuidados e a atenção de Ana certamente teríamos sido abordados e atacados pelo trio e provavelmente roubados. Todo cuidado, portanto, é pouco para quem passeia pela Rua Florida, em Buenos Aires, empesteada de cigarros acesos e tomada também por alguns gatunos dispostos a depenar os incautos displicentes.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 28/09/2009
Reeditado em 06/10/2009
Código do texto: T1836481
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.