Por que troquei uma pela outra.

Muitas pessoas me perguntam por que abandonei a arquitetura.

Antes de responder, devo dizer que, desde criancinha, sabia que só abraçaria uma profissão que eu amasse apaixonadamente e que, portanto, me proporcionasse prazer. Só teria uma profissão que eu me casasse com ela. E logo cedo caí de amores pela arquitetura...

Bem, há muitos motivos pra se abandonar uma companheira de longa data. Entre eles, o amor que se acaba, a traição pérfida sofrida ou até um novo e mais atraente caso de amor.

No meu caso, foi um pouco disso tudo e mais alguma coisa.

Digamos que, quando me casei com a arquitetura, ela era uma parceira humilde e modesta. Tínhamos, eu e ela, um ideal comum -- faríamos projetos e construções de vida dentro dos melhores preceitos do conforto e da harmonia estética, mas com o mínimo de gastos e custos na execução. Nosso objetivo era servir com profissionalismo e empenho à classe média, que quase sempre tinha que recorrer a pessoas sem formação adequada e acabava construindo verdadeiros monstrinhos mal ajambrados -- quentes ou frios demais, excessivamente claros ou escuros, úmidos ou áridos em demasia e quase que invariavelmente de proporções bastante desagradáveis ou inadequadas, fosse por fora ou por dentro.

No começo, como todos os recém-casados, tivemos algumas dificuldades na adaptação. Mas, com o tempo e a convivência, como costuma acontecer com frequência, essas dificuldades foram só piorando...

Ela, de modesta e humilde que era, começou a querer tomar ares de grande madame, mas não passava de uma rematada perua -- coberta de penduricalhos e roupas descombinantes, muita dada aos excessos e à inadequada perfumaria, sempre pesando muito na maquiagem mal feita e nos trejeitos caricatos de elegância presumida, típicos de quem não sabe se equilibrar com nobreza e garbo sobre os espalhafatosos saltos agulha.

E sofreu estas transformações nada sutis porque era uma traidora pérfida, a sem vergonha. Por mais que eu desaprovasse, ficava toda assanhada com os flertes descarados da maioria dos clientes, muitos deles deslumbrados, desafortunadamente desprovidos de cultura arquitetônica, bem como de cacife suficiente, mas firmemente ancorados na obstinação. E que chegavam com aquelas fotos e desenhos das modelos famosas -- muitas delas belas em sua integridade original, na forma e na função -- e exigiam com falsa humildade que ela se tornasse uma espécie de frankenstein das edificações, com o penteado de uma, as roupas de outra, os adereços de outras mais, sem se preocupar com detalhes que julgavam supérfluos, como vestir-se de acordo com o clima, a época, o ambiente e a conta bancária, culminando numa desarmonia irremediável e nada funcional.

Eu bem que tentava preveni-la sobre esses namorados interesseiros de ocasião, dizia que, assim que ela satisfizesse os seus tolos caprichos, eles sem demora iriam passar a desprezá-la por verem, finalmente, o quão vulgar ela se tornara. Mas a danadinha não queria me ouvir, deslumbrada e obstinada que ficava, por osmose e futilidade, achando que iria ser a Giselle Bündchen das edificações...

Isso pra não mencionar que eles, os flertadores desavergonhados, prometiam a ela os melhores terapeutas da estética, os cosméticos mais caros, os tratamentos mais sofisticados. Mas tudo que podiam pagar eram aquelas cabeleireirinhas curiosas e "esteticistas" de salõesinhos acanhados de fundo de quintal, cheias de boas intenções mas sem nenhum preparo ou técnica, e que ainda por cima usavam cosméticos de supermercado ou made in paraguay nos seus serviços menos que amadores. O resultado, vocês bem podem imaginar, não é?

Por essas e por outras, nossa relação foi-se desgastando, se desmoronando, até que se finou por completo. Que Deus a tenha.

Troquei-a sem hesitação por uma parceira que, apesar do magro poder aquisitivo, tem um belo patrimônio intelectual, além de interesses mais parecidos com os meus, voltados pros prazeres do espírito e pra literatura, ainda que indiretamente. Deixei de andar pelos sujos e toscos canteiros de obras, e tudo em vão, pra transitar pelos mais refinados ambientes acadêmicos. Larguei a perfumaria de araque pela pesquisa honesta. Enfim, fiquei mais pobre do que era antes, mas muito mais feliz.

Não que o meu novo relacionamento seja um mar de rosas e pleno de grandes realizações. Temos lá nossos problemas e estranhamentos ocasionais, mas sabemos lidar com eles de modo polido e civilizado. E se não temos entre nós a paixão que me aproximara da ex-companheira, pelo menos temos o amor delicado e dedicado que promete ser tão duradouro quanto tranquilo e enriquecedor.

Até porque ela, ao contrário da anterior e apesar de ser companheira dedicada, não é possessiva, nem ciumenta, nem me toma todo o tempo, deixando algum espaço e oportunidade pra que eu possa exercitar minha verve escrevinhadora extra-profissional -- ou eu deveria dizer extra-conjugal? -- e frequentar, ainda que nem tanto quanto eu gostaria, o meu café literário predileto, o Recanto das Letras, onde posso me encontrar com vários amigos queridos e trocar muitas e ricas idéias, num processo que mistura prazer e aprendizado.

Sei que não seremos felizes para sempre -- quem o é? --, mas sei que seremos bem mais contentes do que muito casal por aí, que sacrifica muitos valores e prazeres do espírito pelos falsos e ilusórios prazeres e valores materiais.

E isso, como contraditoriamente diz a propaganda de um certo cartão de crédito, não tem preço.

:)

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 28/09/2009
Reeditado em 28/09/2009
Código do texto: T1835816
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