Umas vão, outras vêm

Estranhos nomes os dos cinco filhos de Zive: Zeir, Zevou, Zefui, Zirei e Zevem.

Também pudera: o pai era louco de pedra.

Cismara que sua mulher era amante do padre; e mais: que o Zevem era filho do pecado.

Dessa fantasia resultaram dois desastres.

O primeiro: Zevem tornou-se um desequilibrado, dado ao repúdio do pai. Um homem frio, incapaz de se relacionar com o mundo.

O segundo: um dia em que Zevem estava mais atacado, conseguiu o apoio dos irmãos – o pretexto fora um pagamento prometido e não feito a todos por um trabalho contratado – e simplesmente matou o pai. Metera um saco de plástico na cabeça do velho e segurara firme. O velho se debateu, debateu e morreu de boca aberta e os olhos esbugalhados. E cagado e mijado. Os irmãos riam. É o que se poderia chamar de uma família unida.

Foi minha avó que me contou esta história.

Sentada na sua cadeira de espaldar , sob a luz do lampião aceso, ela desfiava o seu rosário de histórias estranhas. Em pouco tempo deu para perceber que ela também era meio lelé da cuca. Dela herdei esta mania de contar histórias. Uma coisa quase compulsiva. Fiz isto a vida toda, como adorava comer a mulher dos outros. Tinha um prazer perverso nisto.

No dia da morte de minha avó ocorreu um fato estranho: um corvo dos mais negros pousou na janela do seu quarto. Agente diz que era corvo, mas na realidade era um anu desgarrado do bando. Aquele pássaro preto comedor de carrapato.

Pois bem: foi neste mesmo dia que o Presidente Wenceslau passara com a sua caravana pela fazenda.

Lembro-me do meu pai , deferente, de chapéu na mão, para recebê-lo. Nunca me esquecerei da cena, pois o meu pai é quem costumava ter envolta de si homens de chapéu na mão. Nunca o vira tirar o chapéu para alguém.

Vale a pena dizer uma palavra a mais sobre o meu pai: era um tropeiro que comprara umas terras distantes nos cafundós de Minas, zona do sertão brabo, sem fim, muito para lá de Pedras de Maria da Cruz, já quase nos confins com a Bahia.

Trabalhara como um mouro, criando seu gado curraleiro traçado com guzerá.

Mal sabia assinar o nome, mas tinha uma conversa agradável e sabia das coisas, aprendidas na escola da vida. Falava com a língua um pouco presa. Era mais para baixinho. Mas por alguma razão, quando estava num local, tudo parecia gravitar em torno dele. Homem de uma argúcia extraordinária, de uma tenacidade feroz e de mente ampla, formada nos grandes embates sertanejos, era um daqueles velhos coronéis de antes de 30 que mandava, desmandava e mandava de novo, conforme o tempo e o clima de seu humor, mas sempre com voz suave e doce, fala mansa, e quanto mais mansa, mais temível. Quando estava realmente zangado e disposto a tudo e a pagar qualquer preço pela decisão que tomasse, a sua voz era quase inaudível. Parecia o sibilo de uma cobra. Silvava.

Rico, vendeu suas terras sertanejas e foi ser criador de gado leiteiro nos arredores de Itajubá.

Foi nessa época que fizera amizade com Wenceslau, que estava no início de sua carreira política. Meu pai, que por natureza era um chefe, apoiava-o e servia-o como só um chefe sabe fazê-lo: com absoluta generosidade e desinteresse. Afinavam-se. São estas coisas que não se explicam; são porque são e fim.

Ambos curtiam fumar o seu cigarrinho de palha pescando na beira de um córrego, como dois mineiros dos bons. Em silencio, observando, meditando.

Contam os criadores de histórias que os dois estavam pescando quando o Wenceslau viu passar um elefante voando na direção oeste-leste. Olhou para meu pai. Ele continuou pescando, quieto. Depois passou outro elefante voando de volta, na direção leste-oeste. Meu pai o acompanhou com os olhos em seu vôo solitário. Depois vieram dois elefantes voando de novo na direção oeste-leste. E aí parece que meu pai não agüentou e disse: “é Wenceslau” e olhando para o Leste continuou, apontando com a cabeça, “acho que eles aninham para aquele lado ali”.

O Presidente saltou do carro fumegante e trazia no rosto aquele seu meio sorriso irresistível. “Fiz um desvio para ter um particular com você”, foi logo dizendo. Só ouvi isto. O resto foram cochichos. Caminharam os dois abraçados, o Presidente com a mão no ombro do meu pai, e falando quase no pé do ouvido, em direção ao curral, onde as mestiçonas leiteiras ruminavam.

O Presidente falava e falava, gesticulava, e meu pai, quieto, com a expressão carregada.

Voltaram sorridentes e foram tomar um café. Mais uns dois dedos de prosa e o Presidente partiu.

Meu pai no dia seguinte seguiu para Belo Horizonte.

Nuca mais vi o meu pai vivo. Morreu de um enfarto do miocárdio uns quinze dias depois.

Lembro-me dele no caixão: um homem pequeno, um corpo de pedra, as mão cruzadas no peito, um desfeito rosto de mármore.

Hoje estas lembranças todas são como névoas.

Umas vem, outras vão, esmaecidas, passando ao sabor dos ventos.

O resto, é como se nunca tivesse existido. Cada vez me lembro menos. É como se eu estivesse numa casa e as luzes fossem se apagando.

Sou um velho numa cadeira de rodas, não porque tenha alguma doença, mas por não mais ter forças nas pernas. Quando levanto, elas tremem.

Fico no meu canto, as pessoas literalmente esquecem de mim.

Pareço uma múmia viva e devo ter mais de cem anos.

Realmente não me lembro da minha idade com precisão e nem sei do nome das pessoas que me rodeiam.

Mas do passado me lembro de coisas assim, como contei, episódios, e não raro confundo pessoas de hoje com pessoas daquele tempo.

Às vezes tenho consciência da minha confusão mental, às vezes não.

Outro dia percebi que as pessoas ficaram muito nervosas quando me encontraram escondido nú debaixo da grande escrivaninha onde mantinha a escrita da fazenda Santa Paula, aquela que eu adorava e que ficava nos arredores de Mariana. Perguntaram-me porque me metera ali. Respondi que era porque estava muito quente e ali debaixo estava mais fresquinho. Se pudesse, não teria mais saído dali.

Se pudesse, cavava o meu túmulo e deitava e ficava, ali na terra, cujo cheiro tanto amo, à espera que alguém jogasse a primeira pá de cal sobre mim.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 27/09/2009
Reeditado em 27/09/2009
Código do texto: T1834360
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.