UMA EPOPEIA GASTRO-ELEITORAL
Mais ou menos cinco horas da manhã e Dr. Carlos já estava de pé esperando para sairmos na minha primeira aventura prática de uma campanha eleitoral – e na boa escola política baiana.Passávamos as férias de julho no vilarejo praiano de Bom Jesus do Pobres.
Eu era noivo da sua filha Virginia Linhares – com certeza, a mulher mais especial que já amei. Dr. Carlos Linhares era uma figura emblemática. Filho de uma rica e tradicional família de Salvador, era um humanista na acepção da palavra – um daqueles casos raros de alguém que se dedica à profissão por amor constante à arte de curar e de servir. Andava com o estetoscópio e alguns medicamentos no carro e atendia qualquer um na rua mesmo, se a necessidade assim o exigisse. Essa sua forma de ser, devia ser genética, pois toda a sua família gostava de ajudar o próximo – inclusive a sua prima carnal a querida e saudosa Irmã Dulce.
Sabedores desta sua visão benemérita da vida – aliado aos seu carisma e alegria constante – um tradicional partido político o escolheu para ser candidato a deputado estadual. E naquele dia, apesar de estarmos em férias, ele chamou-me para fazer um circuito de visitas em varias vilas de pescadores do Recôncavo Baiano – próximos da praia onde estávamos – onde ele tinha vários cabos eleitorais, quase todos pescadores ou moradores de beira de praias. Antes de sairmos, preveniu-me sobre a maior gafe que eu poderia cometer em uma destas visitas: recusar comida ou bebida de um dos anfitriões.
- Você não me faça desfeita com eles, meu filho. Senão eu perco os votos – ensinou-me, sempre com aquele sorriso pronto para desabrochar.
Seis horas da manhã - a primeira visita. Fomos recebidos como se fossemos embaixadores de uma potência mundial em países de terceiro mundo – alegria geral – todos queriam abraçar o médico dos pobres e, como ele me apresentou como seu genro, recebi as mesmas honrarias do ilustre convidado. E aí veio a comida. Nos serviram de tudo: tinha aipim cozido com uma gostosa manteiga de garrafa; beijus de várias qualidades – inclusive um deles recheado com coco ralado e açucar; café com leite e sem leite ; doces diversos e, pasmem: carne de sol além de mais uma dezena de iguarias que fogem à lembrança agora. Me esbaldei comendo de tudo, em porções generosas. Dr. Carlos a tudo assistia e sorria – sorrir bem alto e grosso era e seu forte. Despedimo-nos, entramos no carro e rumando para outra localidade
Segunda casa, terceira, quarta. Sexto barzinho, oitava escola e assim seguíamos. Nesta época eu era bem magrinho e comecei a sentir os reflexos daquela jornada gastro-eleitoral. Já tinha comido numa das casas, buchada com farofa amarela, mungunzá, arrematando com suco de tamarindo – um “chef du cuisine” ficaria encantado com a mistura, mas eu gostaria de ver um deles comer e beber tudo àquilo ao mesmo tempo e ficar vivo; comi feijão de corda, com pedaço de rapadura, café preto – tão forte que parecia ter saído de um dos poços de petróleo da Petrobrás - e sempre tinha o arremate dos doces. Na nossa partida de cada casa, não faltavam os doces.
Do meio-dia para a frente a coisa ficava um pouco mais densa: apareciam as moquecas de peixes e de vários crustáceos, bem azeitadas com dendê, escabeche de peixe, xinxim de galinha e outras comidas de fazer um sulista descuidado passar os últimos dos seus dias numa UTI. Aquilo tudo foi me trazendo sérios desconfortos físicos e emocionais, para não dizer morais. Nas visitas seguintes, logo após Dr. Carlos apresentar-me ,às pessoas eu já solicitava imediatamente a localização do banheiro.
Seis horas e trinta minutos - DA NOITE – e estávamos na última visita. Ele sempre dizia que faltava somente mais uma visita – eu ansiava que fosse mesmo, porque já estava mais mareado que um marinheiro de primeira viagem e suplicava por um banheiro de verdade – estava cansado de ir nos “quartinhos” das pequenas casas.
Entramos sob a costumeira festa dos donos da casa e dos vizinhos mais próximos. Uma casa como qualquer outra de pescadores humildes, porém notava-se que havia sido preparada para a visita do médico querido. Uma salinha pequena – talvez uns 3 x 2 metros, onde descansavam dois pequenos sofás – devidamente forrados com pano grosso e colorido, seguramente para não mostrar os cortes e os defeitos ao nobre visitante. Uma mesinha de centro com um vasinho de flores artificiais de plástico, em cima de uma toalhinha de bilro com uma rendas simpáticas completavam a decoração.
O eu estômago não suportava o ingresso de nem mais um caroço de arroz. Para minha aflição, antes mesmo de se iniciarem as tratativas políticas, a dona da casa trouxe dois pedaços de bolo – um para mim e outro para o meu futuro sogro e algoz - que mediam aproximadamente 16 x 10 cm, com um altura de mais ou menos 5 cm. Era um tijolo fantasiado de bolo. Minha primeira reação foi de recusar, mas Dr. Carlos olhou para mim com aquele olhar reprovador ,indicando que aquilo poderia causar um conflito diplomático de proporções inimagináveis. Fiquei estático, com o prato do monstruoso bolo nas mãos parecendo uma criança excepcional, sem saber o que fazer. Comer, é que não me passava pela cabeça.
Aí, veio a minha infeliz idéia. Diabólica, diria. Logo atrás do meu sofá, tinha uma pequena janela aberta e eu não titubeei. Aproveitando uma distração coletiva dos donos da casa, que olhavam para o outro lado – num movimento ardiloso, rápido, próprio de um mágico de circo – segurei o prato com as duas mãos e arremessei aquele monumento boloso para fora da casa. Dr. Carlos viu e, gozador emérito como sempre foi, não sabia se sorria ou se chorava.
Deu-se, então, o fato que desencadeou toda a cena de uma ópera bufa. A dona da casa, ao voltar da cozinha, notou o meu prato vazio.
- Menina! Rápido, pegue mais um bolo pro genro do Dr. Carlos, que ele gostou. Ele já comeu tudinho! – ordenou, com uma voz gritada e aflita, querendo agradar o genro do seu ídolo.
Chegou mais um pedaço de bolo, na verdade, bem maior que o outro. Neste instante, Dr. Carlos desembestou a dar grosssa e altas risadas e, quase convulsionando chegou a cair do sofazinho. O pessoal não entendia nada e somente perguntava o que estava ocorrendo.
Dr. Carlos quase passando mal somente balbuciava:
- Ah! Meu Deus. Ah ! Meu Senhor do Bonfim, eu não agüento – e olhava para minha cara desconsolada, sorrindo mais alto e debochadamente ainda.
Comi tudo, com uma postura e expressão de um daqueles torturados pela Santa Inquisição. Após despedirmo-nos dos nossos espantados anfitriões, entramos no carro. Dando a partida e, antes de ter outro acesso de riso, o meu ex-futuro sogro ainda falou:
- Olhe, seu infeliz, tomara que um cachorro lá fora tenha comido o bolo, para eu não perder os votos deles. Senão você não vai casar com minha filha ! – e foi sorrindo gostosamente até chegarmos em casa, onde ele contou o meu infortúnio para todo mundo que encontrava.