O Banco e a alma do Capeta

Em tempos de criança, ouvia muitas histórias dramatizadas pela minha mãe. Também ao chegarem alguns amigos do meu pai, dava sempre um jeitinho de ficar por ali escutando os acontecidos mirabolantes de pescadores e caçadores. Tinha um que se chamava Joaquim, não sei por que cargas d’água, era alcunhado de Joaquim Mentira. E suas histórias eram as mais interessantes, sua voz grossa, às vezes, nos capítulos de maior tensão do conto, ficava gaguejante. É numa dessas memoráveis ficções do saudoso que faço uma analogia da situação atual.

Disse ele que um certo fulano passava por sérias dificuldades financeiras, pediu emprestado aos amigos, aos parentes mais próximos e aos mais longes e... nada de ninguém socorrer. Foi então que, no auge da forca, ele apelou para o último recurso de vender a alma para o capeta.

Seguindo as orientações passadas pelo secretário do chifrudo, que aparece numa sexta-feira 13, meia noite de lua cheia, em uma encruzilhada, foi só esperar o dia do dinheiro chegar.

Nessa data, o próprio diabo fazia questão de trazer o montante. Segundo Joaquim Mentira, o chefe dos infernos é um homem fino, engravatado feito político de Brasília, usa óculos escuros e fala com educação.

Não foi exigido nenhum documento, nem sequer consulta no Serasa, e o melhor de tudo é que não cobrava nenhum centavo de juros. A única exigência era que avisasse à família que não desse banho no corpo quando ele morresse.

Recebendo a maleta recheada de notas graúdas, cheirou, beijou e voltou o olhar para o capeta, que sorriu com seus dentes de ouro exalando o clarão noite afora. Ficou tão rico que experimentou de tudo na vida. A esposa maltratada pela pobreza logo se tornou a mulher mais charmosa que já se vira por ali.

A vida estava tão boa que o Fulano até se esquecia que toda a sua fortuna era proveniente de um pacto com o diabo e que sua alma estaria para sempre servindo à galera dos tridentes que a igreja católica tomou de Posseidon.

Dias e noites começaram a causar temores no infeliz, que buscava avidamente uma saída para se livrar da dívida eterna. Depois de muito pensar tentou fazer um acordo com o capiroto, para lhe pagar o que devia com juros e correções, já que o empréstimo rendeu satisfatoriamente, mas não foi aceito!

Triste e moribundo, quando via que as estações do ano mudavam, acusando mais uma era, sabia que o fim estava próximo. Com milhões guardados nos cofres particulares, incontáveis bens materiais e toda família abastada, com a maioria morando no exterior, de repente teve uma vontade iluminada de se confessar ao padre. Mesmo com certo receio, contou sobre o empréstimo. O vigário só perguntou se ainda tinha algum dinheiro. Ao ouvir que rendera mais que o valor pedido, tratou logo de chamar a Irmã Indulgência, que fez seu preço e lhe garantiu a salvação.

Mandou que avisasse à família para lhe dar banho com bastante zelo e passar talco nas suas nádegas após a morte. Assim, na passagem que divide os dois caminhos pós-vida, o limpo é jogado direto para o céu, e o corpo sujo desce. Desta forma Joaquim se cala, fechando as páginas da história.

Agora vem a parte que toca muita gente nesses dias de crise. Um certo servidor público se encontrava em total desespero, devendo aqui, ali e acolá. Para sair da sua casa, dava tantas voltas desviando dos credores que, ao chegar ao trabalho, já tinha ido ao extremo da fronteira do município. Objetivando uma melhoria na condição de vida, pelo menos ao direito de ir e vir sem disfarces, foi tentar um empréstimo no banco onde é obrigado a ter uma conta salário.

Pegou uma senha e sentou-se para esperar; depois de muitos cochilos e desconfortos, um painel eletrônico acusa seu número. Ao sentar-se para analisar as propostas, somando tempo e juros, precisou ser reanimado com álcool no nariz. Visitou ainda todos os outros da cidade e a diferença era quase nada. Extremamente desesperado, buscou, a exemplo do causo de Joaquim Mentira, o último recurso, que pensava ser infalível.

Numa sexta-feira 13, meia noite de lua cheia, encruzilhada próxima ao cemitério e as palavras para chamar o secretário. Tanta foi a demora para a entidade aparecer, que lhe lembrou o banco. Na décima tentativa, aparece uma figura raquítica e bocejante, com um cobertor rasgado cheirando à sujeira.

O servidor olhou aquele descaso, pensou que pudesse ter sido uma piada do inferno. Mas, nas apresentações, o maltrapilho convenceu que era o enviado, pediu que esperasse um pouco, que agora com a tecnologia o resultado era em poucos minutos, e sumiu sem deixar rastro. Imediatamente, um redemoinho soprou a sujeira em volta e fez aparecer uma figura magricela, óculos escuros emendados por durepoxi, e desidratado, se apegando em uma bengala de cabo de vassoura. Nada a ver com a descrição de antes feita pelo amigo pescador. Direto ao assunto, demonstrando certo nervosismo, expôs também uma boca banguela, que com muita dificuldade soprava os dígrafos:

- Seu condenado do estado, filho de uma égua parida, eu estava a ponto de conseguir um gole de pinga para amenizar a situação, e você me chama para pedir dinheiro!? E ainda oferecendo essa alma desvalorizada!? Vai caçar o que fazer! Deixe que eu te fale só uma coisinha: sabes por que, às vezes, os clientes do banco dizem que ali está um Inferno? Não? Então escute: ali é o inferno mesmo! O negócio de comprar alma estava em alta e resolvemos ampliar, fazendo um empréstimo, e cada vez que renegociávamos, estávamos devendo mais. Até que chegou um dia que entregamos o inferno para o banco e, por último, até nossas almas nós vendemos...”