MENDIGOS
O casal fica se beijando de manhã na pracinha da avenida principal do bairro. Uma boa conversa, depois sai carregando as tralhas num carrinho de bebê. É engraçado como a felicidade incomoda. Ela não tem patrimônio à vista (nem a prazo) não tem casa com piscina nem carro na garagem. É a felicidade desprovida de qualquer finalidade que nosso espírito cristão ocidental está habituado a buscar. De ela vir rodeada de adornos e bens geradores de conforto. É o sorriso clean, o traje confortável, a boa educação à mesa e os laços de fraterna hipocrisia. Tudo junto nalgum lar. E só é considerada felicidade se assim for.
Pois esse casal mora em duas praças que há na mesma avenida. A do início e a do final. Quando se cansam de uma paisagem, eles se mudam para a outra Tem sempre algum morador que fica incomodado e pede a polícia para retirá-los das redondezas. Todos os dias a cerimônia se repete. Tomam seu café da manhã (um pão doado ontem, uma garrafa de água colhida na torneira de regar a grama e umas frutas do lixo dos sacolões). Mas o carinho também é permanente. Seu meio de transporte da “casa”, o carrinho de bebê que comporta algumas roupas e cobertas, além da cama, um monte de papelão cuidadosamente dobrado é tudo o que possuem além do cuidado e da atenção diária com o outro. Vejo-os todos os dias. Impassíveis, mas amorosos entre si. Talvez uma redoma anti redoma. A sociedade se protege deles e eles se protegem dela dando um baita sopro de felicidade. Pena que não são observados por esse ângulo interior. Por isso não causam nem inveja. Causam piedade. Aquela piedade que nos sai lá da culpa inexplicável pelas diferenças tão absurdamente gritantes. Da falta de lugar no bonde da oportunidade que não tem lugar para todos. Será que visão nossa é semelhante à do colonizador que considerava o nativo um ser vivo, porém desprovido de sentimentos que comovam? Ah, tá bom, então só precisam de alimentos, agasalhos e pronto.
Pra lá e pra cá, naquela felicidade inacreditável. Incômoda. Meu Deus, como pode uma gente assim ficar com essa cara satisfeita todos os dias? Sem ter casa, sem ter uma mesa para almoçar, sem ter banheiro? E o carinho é invejável. Beijam-se de manhã, sentam-se sob uma arvorezinha arredondada pela jardinagem da prefeitura, se escondem do sol ou da chuva e travam um longo diálogo, talvez delineando o planejamento de como conseguir uma comida naquele dia e onde vão dormir em caso de chuva. Nos olhares que trocam, falam de respeito e admiração de um pelo outro. É ou não é insulto à inalcançável felicidade?
Aqui, não! Vão ser felizes assim lá longe!
OBS:
Inspirado na crônica “O Casal de Andarilhos” de Regor Illesac, daqui do RL.