A pré-história de um urso
Gianluca, onze anos.
Minha avó materna diz que sou da família dos ursos. Quando menino perguntava a ela:
_ Por que sou da família dos ursos?!
_ Você é bonito, gostoso, doce, tem esses cabelos escuros e macios, ri com os olhos.
Enquanto falava vovó passava a mão nos meus cabelos, e eu me sentia um urso de verdade. E vovó, a ursa macia e quentinha, eu me aconchegava, não tinha medo e não precisava mordê-la. Pensava que se era doce era porque gostava de mel. Gosto ainda hoje, até de pipoca com mel.
Urso com memória de elefante. Sou bem informado do que aprontava quando pequeno. Curioso e perguntador, cercado por gente que conta de mim, e fotos de todas minhas idades. Juro que recordo de quando era bebê. Meu amigo Yang, um chinês grandão da minha idade fala que estou zoando, pois é impossível a gente se lembrar de quando é tão novo. Talvez Yang não tenha tantas fotos, nem tanta gente para contar as histórias dele.
Pensando bem, me lembro de pedaços de minha história por causa da minha memória animal? Ou do que as pessoas e as fotos me contam? Fica tudo armazenado em mim, e já nem me importa tanto se me lembro do que me contam ou, bem... É que tenho um orgulho danado dessa minha bendita memória. Ela é uma pessoa amiga dentro de mim, feita de tudo isso que falei e muito mais.
A verdade é que o dia de meu batizado está em mim como um filme. Aconteceu na capela de um hospital. Do nome do hospital me esqueci, mas é aquele que fica na rua Cubatão. O padre que me batizou foi o Padre Faria. Professor de vovô quando ele tinha a minha idade, onze anos.
No meu batizado foi toda minha família: nono Pipo e nona Vitória, pais de papai, os tios Marina e Paulo com Tati e Paula, minhas primas, minha irmã Ana Luiza, Tios José Amâncio e Márcia, com a Núbia bem pequena, tia Flavia a irmã caçula de mamãe, a bisa Mariinha, a tia-avó Heloisa, vovô Josino, vovó Eliane, meus padrinhos, e muitos amigos de papai e mamãe, com crianças pequenas de meu tamanho, e outras maiores.
Meus padrinhos, os tios Claudia e Ronald, novinhos e casadinhos de novo. Tia Claudia teve medo de não aguentar me segurar e me deixar cair, de tão pesado eu era. Estava nos meus cinco meses, e era grandão, afinal, sou um urso, não é? Tia Claudia ainda não tinha filho, e não sabia trampar com meninos. Para dar conta de mim me colocou de pé em seus braços, apoiado em seu peito e na barriga, me segurando com os dois braços. De vez em quando me passava para o tio Ronald, que me segurava também me deixando de pé. Gostei muito mais do que ficar deitado como um bebê bobinho. De pé, apoiado em um de meus padrinhos via tudo em volta de mim, e achei muito engraçado a cara meio risonha meio solene das pessoas, me sentindo o rei da cocada. Quer dizer, do batizado. O dono da festa.
A capela era enfeitada com quadros, os trecos que Padre Faria carregou de vida inteira. Quando me batizou já era velho. Velhinho não, pois Padre Faria era encorpado, andava sem vacilar, e falava claramente coisas interessantes. Da Ordem dos Jesuítas, foi um soldado de Cristo. Vovô contou que o hospital cujo nome não me lembro, foi a última casa de Padre Faria. Parece que casa como têm as pessoas que conheço e as de minha família ele nunca teve. Vovó vai me levar para visitar a capela do hospital agora, para descobrirmos juntos se ainda está como no dia do meu batizado. Padre Faria escrevia nas paredes da capela em que me batizou frases dos filósofos, poetas e pensadores que mais gostava. E havia lindos vitrais. Vovó afirma que os vitrais com certeza estarão lá. Mas quer ver se respeitaram os sinais pré-históricos que Padre Faria deixou. Fico pensando em Padre Faria como um homem pré-histórico, meio descabelado, meio gordo, moreno e vestido de batina negra. Acho muito engraçado imaginar essas bobagens.
A festa do batizado foi na casa onde moravam vovó e vovô. Não moram lá desde que eu tinha três anos. Mas isso é outra história.
Foi a primeira vez que vovó me viu tomando papinha. Ela conta que eu chorava de esgoelar, lágrimas corriam na minha cara vermelha, pois estava descobrindo que o mundo era maior que o peito de minha mãe. Acho que o que vovó quer dizer é que eu imaginava que o mundo era só meu. Assim entendo que estranhei quando Cida, minha babá, me deu sopinha com uma colher dura, no lugar de mamãe me dar o peito onde mamei quando saí de sua barriga. Gosto quando vovó conta que ficou orgulhosa de mim: eu chorava, mas mesmo assim comia. Vovó diz que viu minha garra de vida ali:
_ Gian, você chorava a cada colherada, mas engolia a sopa. Estranhava o mundo maior, mas o recebia. Que força de vida tem meu neto.
Vovó soube que sou da família dos ursos desde que me carregou no colo pela primeira vez, e conta que quando choramingava minha boca ficava redondinha. A partir daquela sopa tornei-me para ela mais que um ursinho, um urso valente.
Depois da sopa dormi meu soninho de bebê. Quando acordei vovô Josino me carregou o tempo todo no seu colo, minhas costas apoiadas em sua barriga para me deixar ver os outros na festa. As pessoas sorriam me beijavam e apertavam a bochecha, como todo mundo faz com os bebês. Acho que foi neste dia que vovô Josino me deu o nome de Bochecha. Quando cresci virei o Janca Buzanca. Vovô inventa nomes para os netos.
Assim foi meu batizado, minha primeira festa. tenho tido festas de aniversário, e em cada um invento alguma coisa: festa de footbal, festa do pijama, e cada festa é única, como foi a do meu batizado, quando entrei para o time de Jesus.