Eu sempre fiquei imaginando que íamos somente minha mãe e eu àquelas visitas ao meu pai no hospital. Mas não, fui eu que tomei só para mim as lembranças de como as coisas eram e de como só eu via. Naquele dia, entramos no quarto e ele não estava na cama, tinha uma mancha de sangue no lençol. Ficamos uns segundos parados, até que ele saiu do banheiro empurrando o suporte do soro e com as veias preparadas para a cirurgia.
Sentou-se na cama e eu numa cadeira perto dali e imediatamente notei que os pés estavam inchados. Perguntei o que era e ele me disse que era por causa do problema nos rins. Farmacêutico meio médico ele sempre fora. Não perguntei mais nada, ele não falou mais nada. Ficou no ar somente aquele olhar que nos demos, eu mirando profundamente o azul de seus olhos. Nem próximos nem distantes, aquele olhar estava ausente.
As crianças, os netos dele, que não podiam entrar para a visita, brincavam lá embaixo, numa algazarra, despreocupados. Ele os foi espiar da janela. Ou, não sei, fui eu que olhei e imaginei esses pensamentos. Não sei que andar que era, mas havia uma distância entre o olhar e a cena que se queria contemplar. Fui eu que pensei na impossibilidade de uma despedida entre o avô e as crianças. O último contato que houvera com cada uma delas era algo que tinha ficado para trás.
A enfermeira veio buscá-lo, deixando somente aquele azul de seu olhar. Foi a última vez que vi meu pai com vida.
Sucederam-se os acontecimentos trágicos que não são difíceis de adivinhar. Quinze horas de cirurgia, a gente em casa tarde da noite recebendo a notícia dada pelo funcionário da funerária, que veio com uma Caravan, carro que meu pai sempre quis ter.
A liberação do corpo, o velório, o funeral, os dias que se seguiram, isso tudo, desvaneceu em minha mente como fumaça de um fogo que já se apagou.
 
Não guardo com tristeza essas recordações, muito menos com indiferença. Superar a falta que me fez foi difícil e um pouco demorado. Mas me agarrei aos momentos bons que tive a oportunidade de viver com ele. E são exatamente esses momentos que trago comigo hoje. Suas histórias em volta da mesa de jantar, sua alegria ao contar piadas como coisas que aconteceram e coisas que aconteceram como se fossem piadas.
Eu me lembro dele me olhando com indisfarçável orgulho quando eu estava desenhando. Sabia os nomes de todos os astros dos filmes de Hollywood, trazia seus discos de música sertaneja para eu por no meu aparelho de som, ia ver os jogos de futebol do time em que eu e meu irmão jogávamos, dava broncas por causa de uns lances, umas falhas, como se fosse o técnico do time, ou melhor, como se fosse empresário de dois grandes craques.
Ficava envergonhado quando eu o abraçava e beijava, mas ria, disfarçado, porque gostava. Contava-me coisas da farmácia, da inveja que tinham os outros funcionários pelo fato de ele ser melhor do que eles e preferido pelos fregueses.
Tenho hoje sempre a impressão de que nos últimos meses de sua vida foi quando mais nos aproximamos, naturalmente. Eu era já quase um homem. Ainda hoje não penso na falta que me faz, guardo esse carinho como fogo daquela fogueira que se apagou. Não o busco mais na lembrança como uma ausência, mas sim como uma presença. Tento entender como essa presença é possível, sem necessidade de buscas sobrenaturais. Ele está presente em tudo o que deixou em nós e isso só se percebe não falando dele, não nas palavras, mas nos olhares que vez por outra trocamos, minha mãe e eu, minhas irmãs e irmãos. Sua história fica aqui, contada ou não contada, vivida, pois nós somos a sua história.
Meu pai não morreu e nem acabou, ele se foi e se hoje eu vivo é porque ele me deixou todo o azul de seus olhos naquele último olhar que trocamos. E as palavras eram desnecessárias e silenciaram naquele momento. Poesia do silêncio, o olhar há de me arrancar sempre os mais belos versos.
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 24/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1828688
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