PESCARIA DE JAPONÊS

Meu padrinho Fulô era dessas pessoas que faziam o “meu tipo inesquecível” (lembram-se da revista “Seleções”?), mercê do seu jeitão calmo, simpático e das suas habilidades.

Bombeiro hidráulico de profissão, autodidata, ele possuía um dom especial para o conserto das coisas e para o fabrico de umas tantas outras.

Um pedaço de folha de zinco sem serventia vinha cair em suas mãos de artista e logo se transformava num bule de café, numa forma de bolo, num caneco. O homem era um verdadeiro artesão.

Exímio atirador, saia nos finais de semana com o seu cachorro perdigueiro, o “Buick”, cartucheira no ombro, embornal a tiracolo. Percorria os cerrados das proximidades (inúmeras vezes eu, menino ainda, o acompanhei nessas incursões), ia até as Goiabeiras, ao Açude Bebedouro, voltando sempre com algumas codornas e perdizes abatidas.

Sua mulher, Tia Judite, o esperava com os primeiros filhos, nus e catarrentos, choramingando pelos cantos da casa, às vezes brincando no quintalzão que terminava, uns trezentos metros abaixo, na beira do córrego margeado de espesso bambuzal.

Padrinho Fulô lhe entregava as codornas, as perdizes e ia se despojar da carabina, das perneiras, do embornal e demais apetrechos do caçador. Depois, vinha para ajudar na limpeza das aves.

Fazia questão, primeiro, de cortar os pés das aves e de amarrá-los numa corda esticada no barracão do quintal, onde guardava ferramentas e seus instrumentos de trabalho. Sua tralha, que ninguém tocava. A coleção dos pés de codornas abatidas era grande. Troféus de caça!

Eu ficava por ali, espiando, admirando-o em todos os seus gestos, querendo ser como ele. Foi o meu ídolo, mormente quando, a caça voando baixo e ligeiro, após ser levantada pelo fiel “Buick”, ele apontava apontava sua cartucheira, mirava e ... bum! A codorna caía, numa poeira de penas. O perdigueiro corria e voltava com ela na boca.

Quando chovia, meu padrinho Fulô vestia uma capa de borracha, chapéu de couro, pegava sua vara de pesca, a lata de minhocas como isca, um balde e se mandava lá pro corguinho.

Passavam as horas, Tia Judite e nós, à beira do fogão de lenha, bebericando café e comendo biscoito fofo, até o regresso do Fulô, capa de chuva ensopada e o balde cheio de bagres e piabas. O almoço do dia seguinte estava mais do que garantido.

E assim, a vidinha boa do Cedro prosseguia, em meio às caçadas de passarinho e às peladas de todas as tardes, junto com os meus amigos.

Certa feita, surgiu no Cedro um forasteiro, um japonês como nunca se viu por ali.

Comerciante, botou logo um mercadinho de secos e molhados e procurou fazer amizades, sempre muito simpático e muito sorridente. Os compadres Bené e Zé do Sinfrônio, também caçadores e pescadores, amigos do meu padrinho Fulô, logo se aproximaram do oriental, fizeram amizade com ele e procuraram puxar o Fulô para o grupo.

Meu padrinho resistia, talvez por desconfiança do japonês, um tipo diferente de todos, pequeno e magro, a cabeça grande, os olhinhos miúdos, o cabelo preto e espetado como escova.

Um belo dia chega o japonês com seu jipe e estaciona bem na porta do Fulô, descendo o compadre Bené em alarido e chamando meu padrinho para uma pescaria.

O Fulô veio à porta e bispou o grupo:- o japonês balançando a cabeça e sorrindo numa profusão de dentes, o compadre Zé do Sinfrônio aboletado e equipado com duas grandes varas e, lá atrás, meio que escondido, o negro Cornélio, sonso que nem ele só.

“- Compadre Bené, agradeço o convite, mais num vou não!”, negaceou, confirmando sua tradicional aversão aos automóveis e veículos mecânicos. “- Ainda que fosse num carro de bois, vá lá. Mas automóvel !”

Mas o Bené tanto insistiu, o Zé do Sinfrônio também, que o meu padrinho, meio contrariado, resolveu acompanhá-los. Pegou seus apetrechos de pescaria e se instalou no fundo do jipe, ao lado do preto Cornélio.

O japonês agradeceu muito e meteu o pé na estrada, tocando rumo a Paraopeba. Pegou a “BR” em direção a Curvelo, sempre rindo e conversando, conversando e rindo. E com uma desvantagem:- olhava a todo o instante para trás a fim de ver a cara de espanto dos seus acompanhantes.

Foi quando, numa curva fechada, o japonês olhou de novo para trás e o jipe saiu da pista, descendo um barranco e capotando espetacularmente.

Afora o grande susto, o pessoal felizmente não se machucou e saíram com pequenos arranhões, simplesmente. Meu padrinho Fulô foi cuspido pra fora logo na descida do barranco, ao primeiro trambolhão, e rolou no capim seco como a bola rolava nas nossas peladas de todas as tardes.

Aí, a turma desvirou o jipe e o empurrou de volta para a estrada, ao tempo em que recolhia seus tarecos para o reinício da viagem.

Todos dentro do jipe, o japonês ao volante mas nem tanto sorridente quanto antes, notaram o Fulô parado à beira da estrada, vara na mão esquerda, coçando a cabeça com a mão direita.

“- Vamo, Fulô? Vamo continuar! As traíra tão esperando a gente! ...”

E o Fulô, decididamente convicto:-

“- Não, pra mim chega. Tô satisfeito. Vou voltar a pé pro Cedro ...”

E não deu nem “tchau”. Regressou pelo acostamento em sentido contrário ...

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RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 24/09/2009
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