Tinha ido dormir relativamente tarde e ligeiramente bêbado. Por isso demorou a acordar com o estrondoso barulho à janela, o vento forte batendo-a insistentemente. Nem percebeu uma luz intensa que pela janela entrava e inundava todo o quarto.
Levantou meio cambaleante e foi até a cozinha, a cabeça doía, tudo rodava, a garganta seca, uma água gelada, com a garrafa na mão, vendo a luz da geladeira invadir a escuridão da cozinha é que se deu conta de que uma luz entrara pela janela do quarto. Teve um instante de medo e perplexidade, ficou atônito e seu primeiro impulso foi correr até o quarto para olhar a luz que ainda deveria estar lá. Mas percebeu que esse era o fruto de seu temor e refreou os passos e, pé ante pé, chegou ao quarto, mas não havia mais nada.
Deve ter sido um sonho, um pesadelo, pensou. Agora estava cansado e com sono, estava com uma ressaca daquelas. Se tivesse mulher lhe pediria um café forte. Se tivesse café, ele mesmo faria. Na sua despensa só tinha porcaria e na geladeira muitas latas de cerveja, umas duas ou três garrafas de vinho de má qualidade, uma garrafa de Martini e uma de gim. Tinha também queijo prato e mortadela, um pouco de salame. Pão de forma com data de validade vencida era campeão de bilheteria na sua cozinha. Alimentava-se muito mal e bebia muito.
Voltou para a cama pensando, como sempre, que tinha bebido muito e não precisava. Aquele frango à passarinho, a porção de calabresa no estômago. E toda aquela cerveja. Não precisava da caipirinha de vodka, da pinga com limão e o conhaque. E o torresmo à pururuca então, nem se fale!
Voltou a dormir com uma certa dificuldade e dessa vez não demorou muito a ouvir o estrondo na janela, o vento batendo-a contra a parede e o batente alternadamente. E viu então a luz a cegar-lhe os olhos e não acreditou. Demorou-se olhando e ali estava toda aquela luz entrando e o vento e a janela batendo e um ruído do vento e das batidas e a luz e, de repente, tudo parou de vez e ficou em silêncio. Estava só ele no escuro do quarto olhando a janela escancarada, tentando entender o que aconteceu, se aconteceu mesmo.
―O que será que foi isso meu Deus? Disse para si mesmo, agora mais atônito do que antes.
―Sou eu mesmo, meu filho. Respondeu uma voz que ele não sabia de onde vinha, mas que espalhava pelo quarto e reverberava por todas as paredes.
―Quem está ai?
―Sou eu, já disse.
―Eu quem? Que palhaçada é essa?
―Ora, você sabe quem é. Você me chamou.
―Eu te chamei? Quem é você? Apareça de uma vez.
―Eu já estou aqui. Você não sente minha presença?
―Quem é você? De uma vez por todas, quem é você?
―Eu sou Deus.
Um silêncio profundo se fez. Ele repassou cada coisa que acontecera até ali e cada palavra desse estranho diálogo. Mas mesmo assim ainda não conseguia acreditar. Não tinha mais certeza de que estava acordado, estava pensando que era o pesadelo que se prolongava. Esquadrinhou tudo à sua volta para se certificar de que estava no seu quarto. Ali estava seu guarda-roupa, na estante os livros de sempre que ele não lia mais junto com os DVDs pornográficos que ele não parava de ver, o seu despertador sobre o criado mudo, seu travesseiro e seus lençóis, tudo conferia com a realidade que ele conhecia, dando conta de que o que ocorria ali se não era real, ele estava ficando louco e era apenas um delírio.
―Difícil assim de acreditar? Disse a voz possante, porém suave, interrompendo suas divagações.
―Acreditar em quê? Quem é você?
―Eu já disse, eu sou Deus.
―Como assim Deus?
―Deus! Assim! Você conhece outro?
―Não! Não! Mas o que estou falando? Como posso saber se não estou sonhando?
―Ora, porque você está acordado. E se você quer uma prova pegue então aquela Bíblia de capa vermelha que você tem.
―Eu não sei onde está.
―Está lá embaixo da estante, ali do lado esquerdo, desde o dia que você brigou com a Marília e atirou ali com força. Foi presente dela. Agora vocês terminaram e nunca mais vão voltar. Ela está de casamento marcado com o Daniel, aquele que foi a primeira paixão dela. Você e ela tiveram um relacionamento muito legal, se gostam muito e podem ser amigos, se quiserem. Mas ela ama mesmo o Daniel e ele a ela e serão felizes, muito felizes.
A essa altura ele já suava e depois de ter ouvido tudo aquilo que só ele e seu melhor amigo sabiam, ele foi ficando cada vez mais assustado e ao estender a mão para pegar a Bíblia, percebeu que o tempo todo ele estava embaixo da cama. Isso não podia ser uma peça que seu amigo estava pregando, pois ele tinha viajado há uma semana para fora do país. Já fazia um ano que ele e a Marília tinham terminado e ele ficou perturbado com a notícia de que ela ia se casar.
―Abra esse livro aí na página 898.
Ele abriu e a voz foi recitando tudo o que estava naquela página e o que estava nas trinta seguintes, sem tirar nem por, falando os capítulos e os versículos, as notas de rodapé, as vírgulas e os pontos.
―Então? Convencido? Ainda não? Bom. Vamos a um outro tipo de provas. Naquele dia na quarta série foi você quem colocou a perereca na gaveta da professora e o Miguel levou a culpa e você não falou nada. Hoje ele é seu melhor amigo, o único que sabe o quanto você sofreu e ainda sofre pela Marília. Ele perdoou você e disse que não ligava pelo castigo, porque no fundo queria ter feito aquilo. Depois no primeiro emprego você riscou de propósito o vidro da máquina de xerox, pois a manutenção demorava e se tinha uma coisa que você detestava era tirar xerox. Mais tarde, já em outro emprego, ocupando o cargo de gerente, você deu em cima da Teresa e traiu a Marília com ela não uma, mas três vezes. Você amava a Marília, mas não resistia quando estava perto daquele pedaço de mulher. Cabelos ruivos, sardas no rosto, um corpão de mulher, ardente, boa de cama, liberada...
―Chega! Por favor, chega. Eu quase acredito. Mas por que você, ah, quer dizer, o Senhor, não se mostra?
―Por que a visão divina pode incendiar e destruir você. E você sabe disso. Como prova final, vou adivinhar sua próxima pergunta. Mas antes atenda ao telefone. É a sua mãe, está tudo bem. Ela ligou e você não estava e ela se preocupou um pouco. Sabe que você está triste por causa da Marília e vai convidar você para almoçar na casa dela amanhã. Fez quibe de bandeja, seu prato preferido, e mousse de chocolate, que você também gosta.
―Mas o telefone nem está tocando. Nem terminou a frase e o telefone tocou.
―Alô! Mãe? Oi, tudo bem? Tudo bem aqui também. O quê? Amanhã? Tá bom, eu vou sim, pode me esperar. Lá pelas dez horas chego aí. O quê? Ah, quibe de bandeja. Ótimo! Mousse de chocolate? Maravilha! Tá, mãe, tudo bem, eu estou bem, não se preocupe.
Todas as suas suspeitas dissiparam-se. Era estranho, mas Deus estava ali e falava com ele. O espanto que até há pouco o dominara foi substituído por um estranho estado de torpor. Era como podia ser mais fácil aceitar e entender o absurdo daquela situação.
―Está bem. Então está bem. Você é Deus e... lembrou-se que a voz tinha dito que ia adivinhar a sua próxima pergunta e ocorreu-lhe falar-lhe isso, mas antes de se pronunciar, a voz falou primeiro.
―A sua próxima pergunta é “o que você veio fazer aqui?”
―Certo! Certo! Você sabe mesmo tudo. O que você veio fazer aqui?
―Ora, o que estou fazendo. Vim falar com você. Tem umas coisas que preciso lhe dizer.
―Comigo? Coisas para me dizer? Ora, mas quem sou para ter esse merecimento? Por que não vai aos padres, aos bispos e cardeais, por que não vai ao papa?
―Eles não iam querer ouvir o que tenho para dizer. E outra, Deus não é só para os católicos, é para todo o povo da Terra.
―O quê? O que você veio dizer?
―Vim fazer uma revelação. Vocês não ficam o tempo todo pedindo isso?
―Então, se é para isso que veio, vamos lá.
―Antes vamos tirar esse álcool do corpo e eliminar essa ressaca, já que você não tem mulher para lhe fazer um café e nem café para fazer, se quisesse e se fizesse. Vamos tirar essa dor de cabeça que é preciso estar bem para ouvir o que tenho a dizer.
A voz ou aquela presença, ao terminar de falar isso, aquietou-se por um instante, enquanto uma brisa leve e firme entrava pela janela, bem na direção de sua cabeça e ele ia sentindo ela parar de doer, a ressaca saindo aos poucos, mas rapidamente de seu corpo e, terminado aquilo, estava novo em folha, revigorado. Então, antes mesmo que ele pudesse dar um suspiro de alívio a voz se manifestou.
―Por que eu? Você ia perguntar, depois de ter aceitado que vim fazer uma revelação, você ia perguntar isso. Sei que adivinhei e você está ainda mais perplexo. Então já vou adiantando as duas coisas, as duas respostas e se aparecer em seu interior mais alguma pergunta enquanto eu falo, vou responder, para você se certificar de que não se trata de uma brincadeira. Isso aqui é sério, muito sério, meu filho!
Ele engoliu em seco e era tudo o que restava fazer, engolir em seco e render-se ao surrealismo daquela verdade que transcorria ali, tendo a noite e o silêncio como testemunha. Aliviado da ressaca e da dor de cabeça, recostou-se, já sentado na cama, esboçando um discreto sorriso de aquiescência. Não adiantava. Tudo o que ele pensasse, aquela voz ia adivinhar. Então o melhor era relaxar e ouvir tudo o que a voz tinha a dizer.
―Eu vim aqui para fazer uma revelação muito importante. Preste atenção no que estou falando. O que vim aqui dizer para você é muito importante.
―O quê?
―Vim aqui dizer que Eu Não Existo.
―O quê???
―Isso mesmo que você ouviu: Eu Não Existo!
―Mas como?! Você não existe? Não pode? Quer dizer, como é que pode?
―Engraçado você, não? No início estava aí todo cheio de dificuldade em acreditar que eu existo, eu aqui me manifestando, quando digo que não existo mesmo, você agora não quer acreditar naquilo que antes acreditava, ou seja, se eu existo e apareço você não acredita e se eu digo então que não existo e você ainda assim não acredita. Em que você quer acreditar, afinal das contas?
―Espera aí! Se você não existe mesmo, então como apareceu?
―Você está me vendo?
―Não.
―Então não é fácil de acreditar que eu não existo?
―Não. Eu também não vejo o ar.
―Ah, essa é fácil. Você sente o ar.
―Mas para que você veio me fazer essa revelação?
―Ora! Essa também é fácil. Para você revelar ao mundo.
―O quê? Revelar ao mundo que você não existe? Espera aí. Isso tá muito confuso. Ninguém vai acreditar em mim, vão me prender, me bater, perseguir, sei lá mais o que, vão me tachar de louco.
―Olha, o trabalho que eu estou te dando é muito mais fácil do que o trabalho que até agora tiveram. Ou você não percebe que é muito mais fácil acreditar que eu não existo do que acreditar que eu existo?
―Espera um pouco. Você quer que eu diga que você não existe. Mas ao mesmo tempo aparece como um vendaval na minha janela, na forma de uma luz intensa, com todos esses efeitos especiais de cinema, tudo isso para me revelar que você não existe?
―Isso mesmo!
―Então o que é isso que não é você que não existe que fala comigo para eu dizer ao mundo inteiro que você revelou e me mandou dizer a eles que não existe?
―Fruto da sua imaginação.
―O quê?
―Isso mesmo. Não passo de fruto da sua imaginação.
―Não, meu Deus. Todos esses efeitos de cinema, fruto da minha imaginação? Então vou sair por aí e dizer, olha, é o seguinte, coisa pesada, vi Deus, e sabe o que ele disse? Mandou dizer que não existe! Ora essa! Quer dizer então que vou ter que convencer o mundo que Deus Todo-Poderoso se deu ao luxo de aparecer à minha miserável pessoa para revelar que, preste bem atenção, revelar que, veja bem, revelar que não existe? E mais: disse que ele é apenas fruto da minha imaginação.
―Não da sua. Da raça humana. Não sou fruto da sua imaginação em particular. Sou fruto da imaginação de toda a raça humana, de cada um em particular e de todos ao mesmo tempo.
―Olha, não vai dar. Você me parece um cara legal, curou a minha ressaca, a dor de cabeça e tudo o mais, legal aquele lance da luz e do vendaval e essa voz que parece estar em toda parte em minha casa, em minha cabeça. Mas eu sair por aí dizendo que você apareceu para me dizer que você não existe, isso realmente não dá.
―Não sabia que você tinha tanta necessidade assim de que eu existisse.
―É que é o funcionamento normal das coisas, a ordem do universo, sei lá, essas coisas, tudo baseado na sua existência. E você aí dizendo que não existe.
―Não existo e sou fruto da sua imaginação. Apenas isso. É muito?
―Da minha imaginação?
―Da sua em particular e de toda a raça humana. E sobre isso de funcionamento normal das coisas, o que você vai fazer com o fato de eu não existir? Vai parar de viver, de sonhar e de levantar a cada dia com essa firme intenção de levar adiante essa capacidade soberanamente humana de superar toda e qualquer adversidade?
―Não sei...
―Então vai querer parar de se sentir vivo, de querer ser feliz, de amar de novo, e de passar tudo isso a outros e ter filhos e perpetuar a espécie, só por que eu não existo.?
―É difícil saber...
―Vai deixar a Teresa esperando por você? Quem garante que ela não é a mulher da sua vida?
―E ela é?
―Não sei. Eu não existo e não posso responder a essa pergunta. E mesmo que existisse (ou não existindo) a escolha é sua. Você só vai saber se você for até ela e dizer tudo o que quer dizer e perguntar tudo o que quer perguntar. Ela só vai ser a mulher da sua vida se você a colocar na sua vida.
―É...
―Bem, aqui a sua imaginação chegou ao fim e, como sou fruto da sua imaginação, tenho que desaparecer.
Um enorme silêncio se fez tão de repente e pairou no ar como se fosse uma eternidade. Uma sensação de extremo prazer e alívio tomou conta dele, enquanto rememorava esses estranhos acontecimentos, não sem um discreto sorriso nos lábios, como quem descobre um enorme segredo e vai conviver para sempre com ele. Sentia coisas tão inusitadas, uma certa paz, alegria de viver, um estado de torpor que o levava a contemplar até o branco do azulejo do banheiro como se fosse uma obra de arte.
Depois do banho, lá pelas dez da manhã, chegou a casa de sua mãe, que ao recebê-lo foi colhida num longo e intenso abraço e coberta de beijos, eles que tinham brigado tanto por causa de nada. Arrancou dela uma lágrima de felicidade rapidamente disfarçada. Falaram no almoço da vida, das histórias da infância e riram muito e ele falou do futuro. E comeram quibe de bandeja e de sobremesa mousse de chocolate. Ligou para Marília parabenizando-a pelo casamento. Uma grande amizade nascia ali e eles sabiam. Ligou para Teresa e seu coração saltou no peito. Amava, não só Teresa, mas sobretudo a vida e a si mesmo.
Na sua imaginação havia uma janela a bater com o vento, uma luz intensa e uma voz soando, firme e suave.
Não dava para contar como conseguira largar a bebida.
Levantou meio cambaleante e foi até a cozinha, a cabeça doía, tudo rodava, a garganta seca, uma água gelada, com a garrafa na mão, vendo a luz da geladeira invadir a escuridão da cozinha é que se deu conta de que uma luz entrara pela janela do quarto. Teve um instante de medo e perplexidade, ficou atônito e seu primeiro impulso foi correr até o quarto para olhar a luz que ainda deveria estar lá. Mas percebeu que esse era o fruto de seu temor e refreou os passos e, pé ante pé, chegou ao quarto, mas não havia mais nada.
Deve ter sido um sonho, um pesadelo, pensou. Agora estava cansado e com sono, estava com uma ressaca daquelas. Se tivesse mulher lhe pediria um café forte. Se tivesse café, ele mesmo faria. Na sua despensa só tinha porcaria e na geladeira muitas latas de cerveja, umas duas ou três garrafas de vinho de má qualidade, uma garrafa de Martini e uma de gim. Tinha também queijo prato e mortadela, um pouco de salame. Pão de forma com data de validade vencida era campeão de bilheteria na sua cozinha. Alimentava-se muito mal e bebia muito.
Voltou para a cama pensando, como sempre, que tinha bebido muito e não precisava. Aquele frango à passarinho, a porção de calabresa no estômago. E toda aquela cerveja. Não precisava da caipirinha de vodka, da pinga com limão e o conhaque. E o torresmo à pururuca então, nem se fale!
Voltou a dormir com uma certa dificuldade e dessa vez não demorou muito a ouvir o estrondo na janela, o vento batendo-a contra a parede e o batente alternadamente. E viu então a luz a cegar-lhe os olhos e não acreditou. Demorou-se olhando e ali estava toda aquela luz entrando e o vento e a janela batendo e um ruído do vento e das batidas e a luz e, de repente, tudo parou de vez e ficou em silêncio. Estava só ele no escuro do quarto olhando a janela escancarada, tentando entender o que aconteceu, se aconteceu mesmo.
―O que será que foi isso meu Deus? Disse para si mesmo, agora mais atônito do que antes.
―Sou eu mesmo, meu filho. Respondeu uma voz que ele não sabia de onde vinha, mas que espalhava pelo quarto e reverberava por todas as paredes.
―Quem está ai?
―Sou eu, já disse.
―Eu quem? Que palhaçada é essa?
―Ora, você sabe quem é. Você me chamou.
―Eu te chamei? Quem é você? Apareça de uma vez.
―Eu já estou aqui. Você não sente minha presença?
―Quem é você? De uma vez por todas, quem é você?
―Eu sou Deus.
Um silêncio profundo se fez. Ele repassou cada coisa que acontecera até ali e cada palavra desse estranho diálogo. Mas mesmo assim ainda não conseguia acreditar. Não tinha mais certeza de que estava acordado, estava pensando que era o pesadelo que se prolongava. Esquadrinhou tudo à sua volta para se certificar de que estava no seu quarto. Ali estava seu guarda-roupa, na estante os livros de sempre que ele não lia mais junto com os DVDs pornográficos que ele não parava de ver, o seu despertador sobre o criado mudo, seu travesseiro e seus lençóis, tudo conferia com a realidade que ele conhecia, dando conta de que o que ocorria ali se não era real, ele estava ficando louco e era apenas um delírio.
―Difícil assim de acreditar? Disse a voz possante, porém suave, interrompendo suas divagações.
―Acreditar em quê? Quem é você?
―Eu já disse, eu sou Deus.
―Como assim Deus?
―Deus! Assim! Você conhece outro?
―Não! Não! Mas o que estou falando? Como posso saber se não estou sonhando?
―Ora, porque você está acordado. E se você quer uma prova pegue então aquela Bíblia de capa vermelha que você tem.
―Eu não sei onde está.
―Está lá embaixo da estante, ali do lado esquerdo, desde o dia que você brigou com a Marília e atirou ali com força. Foi presente dela. Agora vocês terminaram e nunca mais vão voltar. Ela está de casamento marcado com o Daniel, aquele que foi a primeira paixão dela. Você e ela tiveram um relacionamento muito legal, se gostam muito e podem ser amigos, se quiserem. Mas ela ama mesmo o Daniel e ele a ela e serão felizes, muito felizes.
A essa altura ele já suava e depois de ter ouvido tudo aquilo que só ele e seu melhor amigo sabiam, ele foi ficando cada vez mais assustado e ao estender a mão para pegar a Bíblia, percebeu que o tempo todo ele estava embaixo da cama. Isso não podia ser uma peça que seu amigo estava pregando, pois ele tinha viajado há uma semana para fora do país. Já fazia um ano que ele e a Marília tinham terminado e ele ficou perturbado com a notícia de que ela ia se casar.
―Abra esse livro aí na página 898.
Ele abriu e a voz foi recitando tudo o que estava naquela página e o que estava nas trinta seguintes, sem tirar nem por, falando os capítulos e os versículos, as notas de rodapé, as vírgulas e os pontos.
―Então? Convencido? Ainda não? Bom. Vamos a um outro tipo de provas. Naquele dia na quarta série foi você quem colocou a perereca na gaveta da professora e o Miguel levou a culpa e você não falou nada. Hoje ele é seu melhor amigo, o único que sabe o quanto você sofreu e ainda sofre pela Marília. Ele perdoou você e disse que não ligava pelo castigo, porque no fundo queria ter feito aquilo. Depois no primeiro emprego você riscou de propósito o vidro da máquina de xerox, pois a manutenção demorava e se tinha uma coisa que você detestava era tirar xerox. Mais tarde, já em outro emprego, ocupando o cargo de gerente, você deu em cima da Teresa e traiu a Marília com ela não uma, mas três vezes. Você amava a Marília, mas não resistia quando estava perto daquele pedaço de mulher. Cabelos ruivos, sardas no rosto, um corpão de mulher, ardente, boa de cama, liberada...
―Chega! Por favor, chega. Eu quase acredito. Mas por que você, ah, quer dizer, o Senhor, não se mostra?
―Por que a visão divina pode incendiar e destruir você. E você sabe disso. Como prova final, vou adivinhar sua próxima pergunta. Mas antes atenda ao telefone. É a sua mãe, está tudo bem. Ela ligou e você não estava e ela se preocupou um pouco. Sabe que você está triste por causa da Marília e vai convidar você para almoçar na casa dela amanhã. Fez quibe de bandeja, seu prato preferido, e mousse de chocolate, que você também gosta.
―Mas o telefone nem está tocando. Nem terminou a frase e o telefone tocou.
―Alô! Mãe? Oi, tudo bem? Tudo bem aqui também. O quê? Amanhã? Tá bom, eu vou sim, pode me esperar. Lá pelas dez horas chego aí. O quê? Ah, quibe de bandeja. Ótimo! Mousse de chocolate? Maravilha! Tá, mãe, tudo bem, eu estou bem, não se preocupe.
Todas as suas suspeitas dissiparam-se. Era estranho, mas Deus estava ali e falava com ele. O espanto que até há pouco o dominara foi substituído por um estranho estado de torpor. Era como podia ser mais fácil aceitar e entender o absurdo daquela situação.
―Está bem. Então está bem. Você é Deus e... lembrou-se que a voz tinha dito que ia adivinhar a sua próxima pergunta e ocorreu-lhe falar-lhe isso, mas antes de se pronunciar, a voz falou primeiro.
―A sua próxima pergunta é “o que você veio fazer aqui?”
―Certo! Certo! Você sabe mesmo tudo. O que você veio fazer aqui?
―Ora, o que estou fazendo. Vim falar com você. Tem umas coisas que preciso lhe dizer.
―Comigo? Coisas para me dizer? Ora, mas quem sou para ter esse merecimento? Por que não vai aos padres, aos bispos e cardeais, por que não vai ao papa?
―Eles não iam querer ouvir o que tenho para dizer. E outra, Deus não é só para os católicos, é para todo o povo da Terra.
―O quê? O que você veio dizer?
―Vim fazer uma revelação. Vocês não ficam o tempo todo pedindo isso?
―Então, se é para isso que veio, vamos lá.
―Antes vamos tirar esse álcool do corpo e eliminar essa ressaca, já que você não tem mulher para lhe fazer um café e nem café para fazer, se quisesse e se fizesse. Vamos tirar essa dor de cabeça que é preciso estar bem para ouvir o que tenho a dizer.
A voz ou aquela presença, ao terminar de falar isso, aquietou-se por um instante, enquanto uma brisa leve e firme entrava pela janela, bem na direção de sua cabeça e ele ia sentindo ela parar de doer, a ressaca saindo aos poucos, mas rapidamente de seu corpo e, terminado aquilo, estava novo em folha, revigorado. Então, antes mesmo que ele pudesse dar um suspiro de alívio a voz se manifestou.
―Por que eu? Você ia perguntar, depois de ter aceitado que vim fazer uma revelação, você ia perguntar isso. Sei que adivinhei e você está ainda mais perplexo. Então já vou adiantando as duas coisas, as duas respostas e se aparecer em seu interior mais alguma pergunta enquanto eu falo, vou responder, para você se certificar de que não se trata de uma brincadeira. Isso aqui é sério, muito sério, meu filho!
Ele engoliu em seco e era tudo o que restava fazer, engolir em seco e render-se ao surrealismo daquela verdade que transcorria ali, tendo a noite e o silêncio como testemunha. Aliviado da ressaca e da dor de cabeça, recostou-se, já sentado na cama, esboçando um discreto sorriso de aquiescência. Não adiantava. Tudo o que ele pensasse, aquela voz ia adivinhar. Então o melhor era relaxar e ouvir tudo o que a voz tinha a dizer.
―Eu vim aqui para fazer uma revelação muito importante. Preste atenção no que estou falando. O que vim aqui dizer para você é muito importante.
―O quê?
―Vim aqui dizer que Eu Não Existo.
―O quê???
―Isso mesmo que você ouviu: Eu Não Existo!
―Mas como?! Você não existe? Não pode? Quer dizer, como é que pode?
―Engraçado você, não? No início estava aí todo cheio de dificuldade em acreditar que eu existo, eu aqui me manifestando, quando digo que não existo mesmo, você agora não quer acreditar naquilo que antes acreditava, ou seja, se eu existo e apareço você não acredita e se eu digo então que não existo e você ainda assim não acredita. Em que você quer acreditar, afinal das contas?
―Espera aí! Se você não existe mesmo, então como apareceu?
―Você está me vendo?
―Não.
―Então não é fácil de acreditar que eu não existo?
―Não. Eu também não vejo o ar.
―Ah, essa é fácil. Você sente o ar.
―Mas para que você veio me fazer essa revelação?
―Ora! Essa também é fácil. Para você revelar ao mundo.
―O quê? Revelar ao mundo que você não existe? Espera aí. Isso tá muito confuso. Ninguém vai acreditar em mim, vão me prender, me bater, perseguir, sei lá mais o que, vão me tachar de louco.
―Olha, o trabalho que eu estou te dando é muito mais fácil do que o trabalho que até agora tiveram. Ou você não percebe que é muito mais fácil acreditar que eu não existo do que acreditar que eu existo?
―Espera um pouco. Você quer que eu diga que você não existe. Mas ao mesmo tempo aparece como um vendaval na minha janela, na forma de uma luz intensa, com todos esses efeitos especiais de cinema, tudo isso para me revelar que você não existe?
―Isso mesmo!
―Então o que é isso que não é você que não existe que fala comigo para eu dizer ao mundo inteiro que você revelou e me mandou dizer a eles que não existe?
―Fruto da sua imaginação.
―O quê?
―Isso mesmo. Não passo de fruto da sua imaginação.
―Não, meu Deus. Todos esses efeitos de cinema, fruto da minha imaginação? Então vou sair por aí e dizer, olha, é o seguinte, coisa pesada, vi Deus, e sabe o que ele disse? Mandou dizer que não existe! Ora essa! Quer dizer então que vou ter que convencer o mundo que Deus Todo-Poderoso se deu ao luxo de aparecer à minha miserável pessoa para revelar que, preste bem atenção, revelar que, veja bem, revelar que não existe? E mais: disse que ele é apenas fruto da minha imaginação.
―Não da sua. Da raça humana. Não sou fruto da sua imaginação em particular. Sou fruto da imaginação de toda a raça humana, de cada um em particular e de todos ao mesmo tempo.
―Olha, não vai dar. Você me parece um cara legal, curou a minha ressaca, a dor de cabeça e tudo o mais, legal aquele lance da luz e do vendaval e essa voz que parece estar em toda parte em minha casa, em minha cabeça. Mas eu sair por aí dizendo que você apareceu para me dizer que você não existe, isso realmente não dá.
―Não sabia que você tinha tanta necessidade assim de que eu existisse.
―É que é o funcionamento normal das coisas, a ordem do universo, sei lá, essas coisas, tudo baseado na sua existência. E você aí dizendo que não existe.
―Não existo e sou fruto da sua imaginação. Apenas isso. É muito?
―Da minha imaginação?
―Da sua em particular e de toda a raça humana. E sobre isso de funcionamento normal das coisas, o que você vai fazer com o fato de eu não existir? Vai parar de viver, de sonhar e de levantar a cada dia com essa firme intenção de levar adiante essa capacidade soberanamente humana de superar toda e qualquer adversidade?
―Não sei...
―Então vai querer parar de se sentir vivo, de querer ser feliz, de amar de novo, e de passar tudo isso a outros e ter filhos e perpetuar a espécie, só por que eu não existo.?
―É difícil saber...
―Vai deixar a Teresa esperando por você? Quem garante que ela não é a mulher da sua vida?
―E ela é?
―Não sei. Eu não existo e não posso responder a essa pergunta. E mesmo que existisse (ou não existindo) a escolha é sua. Você só vai saber se você for até ela e dizer tudo o que quer dizer e perguntar tudo o que quer perguntar. Ela só vai ser a mulher da sua vida se você a colocar na sua vida.
―É...
―Bem, aqui a sua imaginação chegou ao fim e, como sou fruto da sua imaginação, tenho que desaparecer.
Um enorme silêncio se fez tão de repente e pairou no ar como se fosse uma eternidade. Uma sensação de extremo prazer e alívio tomou conta dele, enquanto rememorava esses estranhos acontecimentos, não sem um discreto sorriso nos lábios, como quem descobre um enorme segredo e vai conviver para sempre com ele. Sentia coisas tão inusitadas, uma certa paz, alegria de viver, um estado de torpor que o levava a contemplar até o branco do azulejo do banheiro como se fosse uma obra de arte.
Depois do banho, lá pelas dez da manhã, chegou a casa de sua mãe, que ao recebê-lo foi colhida num longo e intenso abraço e coberta de beijos, eles que tinham brigado tanto por causa de nada. Arrancou dela uma lágrima de felicidade rapidamente disfarçada. Falaram no almoço da vida, das histórias da infância e riram muito e ele falou do futuro. E comeram quibe de bandeja e de sobremesa mousse de chocolate. Ligou para Marília parabenizando-a pelo casamento. Uma grande amizade nascia ali e eles sabiam. Ligou para Teresa e seu coração saltou no peito. Amava, não só Teresa, mas sobretudo a vida e a si mesmo.
Na sua imaginação havia uma janela a bater com o vento, uma luz intensa e uma voz soando, firme e suave.
Não dava para contar como conseguira largar a bebida.