Mudança

Mudança

Esvaziar os móveis. Desmontar armários, camas e mesas, além de empilhar cadeiras e bancos no canto da sala onde, até minutos atrás, repousava um sofá. Embalar louças, taças, lustres e lâmpadas, todos cuidadosamente forrados com jornais das mais diversas datas – Maneira prática de resguardar carga delicada. Se o quebra-cabeça desmembrado, que antes compunha a mobília, já está na garagem, é hora de recolher o carpete que sob eles estava. Caixas... Muitas caixas de papelão remendadas com fita adesiva, guardando roupas e todo o restante. Abre-se um dos cubos celulóticos, pois algo foi lacrado indevidamente: Caneta para escrever “frágil”, “brinquedos das crianças”, “toalhas e lençóis”, etc. Rótulos cansativos de se grafar, na necessidade patética de fazer o que está destinado a ser desfeito logo adiante: As caixas vão para o lixo após desembalarem tudo na nova casa.

- Ah! Mudança...

Enquanto os carregadores agilizam seu serviço com frieza, empilhando objetos no baú do caminhão, perdigotos de nostalgia são expelidos, como se os [quase] ex-moradores se despedissem de cada parede, soltando comentários saudosos sobre o que foi vivido ao longo dos anos ali resididos. Se o câmbio entre lares fosse comparado a algum outro evento da vida, o mais semelhante seria o enterro de um ente querido, onde um agente funerário é frígido e objetivo perante àquele que, para ele, não passa de um cadáver. Equivalente ao encarregado dos que já se foram, está a postura profissional da transportadora, insensível ao imóvel.

- Mais caixas para abarrotar a carroceria!

Quanto aos “migrantes”, que estabeleceram um laço afetivo com a casa onde viveram, esta se tornará uma lembrança apagada do que não mais se repetirá, da mesma forma que uma pessoa morta nunca mais será vista novamente.

***

As quatro horas de carro, à frente do veículo que transporta todos os bens da família, transmitem a sensação que – Cogita-se – Moisés sentiu ao guiar seu povo por quarenta anos no deserto, sem endereço fixo. Sem lar. Aquele momento de devassidão, sem refúgio no lar já abandonado e ainda desinstalado da nova moradia, se equipararia à uma transação de caixa eletrônico mal projetado, onde a falta de luz durante a operação acarretaria na invalidade do depósito que está sendo feito: “Para onde foi o dinheiro?”. No entanto, ao menos os algoritmos de tal tecnologia já conseguem evitar que isso ocorra, diferente da carga física de que aqui tratamos. É fácil imaginar o que se passa na mente do chefe familiar, matutando as conseqüências de um acidente grave com o caminhão. No Refletidos em um palmo de espelho, estão todos os pertences acumulados ao longo de uma vida inteira.

***

- Finalmente! Chegamos.

A árdua tarefa de acompanhar a mudança, checando possíveis esquecimentos e evitando danos ao conteúdo movido, por si só já é extremamente fatigante, mas a maratona da debandada começa a soar de forma suave quando se dá por conta do processo de chegada. Final do dia. A certeza de que, por mais que haja um intervalo de descanso ou desjejum, não há poltrona, televisão, ventilador, fogão, geladeira... Tudo ainda está sendo retirado pelos contratados, os quais não podem se responsabilizar pela disposição das coisas a serem organizadas dentro da casa. A acomodação é a pior parte.

- Mãe, to com fome!

- Calma, filho. Espera os moços colocarem as coisas na cozinha...

- Amor, em qual caixa está o carregador do meu celular? Preciso ligar para o síndico e pedir as chaves dos quartos...

- A cama vai ficar aqui, senhor?

A paciência já está no limite. As divergências sobre o local de cada móvel causa atrito entre o casal. Os momentos que antecedem o dispensar dos ajudantes, torcendo a cada caixa para que seja a última, confrontam a miragem que estava se tornando a visão de conforto estabelecido no novo lar.

Enfim, eletrodomésticos em posições provisórias. As caixas com panelas, louças e talheres são coisas que custam a ser encontradas no meio de tudo. Sofá da sala no vão de entrada. As mínimas condições para a primeira refeição sob o novo teto foram atingidas. Pizza por encomenda. Pratos de plástico.

- Ufa! Agora já podemos começar a montar os móveis.

- Pai! Estou com sede!

- Onde está a caixa dos copos?

- Deve estar...

Rafael S P Valle
Enviado por Rafael S P Valle em 22/09/2009
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