Gargantua
O criminoso sobe arrastando-se pelos degraus até o cadafalso e lá na forca profere suas últimas palavras. Assim então o chão se abre como se o próprio demônio viesse buscar seu filho que expira como um pêndulo bailando sem ritmo no ar. A árvore onde Judas tirou sua vida retorceu-se em agonia por servir de remição para tal covarde. Desde então só as aves de mau agouro e corvos nela se empoleiram em seus galhos profanos. E a corda ainda está nela presa.
As cabeças se amontoam na cesta a cada golpe da guilhotina e do machado do carrasco e assim a aristocracia e a realeza já não parecem mais tão imponentes. E quanto mais se humilha a elite na hora da morte, mais a plebe grita e comemora pela revolução burguesa que muda apenas os reis e bispos por outras peças, mas que continua usando os peões da mesma forma que seus antecessores.
Com as próprias mãos enforcamos nossas vítimas enquanto dormem, tomados pelo ódio. Enlevados de adoração, damos os mais belos colares de diamantes para conquistar o coração da pessoa amada. Ou ao menos na esperança de comprar afeto. É por coleiras que domamos e puxamos os animais por nós subjugados, os cães, os corcéis, o gado e os escravos.
A criança com sono se enlaça no pescoço do pai quando é levado em seu colo para cama. O afogado que é resgatado das águas agarra-se tal qual a criança agarra-se ao pai àquele que o salva.
O soldado na luta bestial contra o inimigo, sem balas, pedras ou facas, estrangula o oponente e depois é condecorado e feito herói com uma pesada medalha que lhe pesa no peito, parecendo-lhe mais um fardo do que uma glória. No entanto, para o atleta que vence com sacrifício os adversários, nada lhe é mais recompensador do que os louros e o ouro reluzindo sobre seu coração.
Os beijos dos amantes que escapam dos lábios precisam passar pelo pescoço, pela nuca, para anunciar a todo o corpo os prazeres que virão. O gozo que se inicia onde os sexos se misturam e se fundem escala a medula espalhando o aniquilamento e o ópio da carne pelos membros entorpecendo a alma.
As confissões feitas ao pé do ouvido são as que os apaixonados trocam, do mesmo modo os traidores, os mentirosos e os fomentadores de intriga despejam veneno no ouvido daqueles que enganam, pobres os que confiam no julgamento de serpentes. Menos perigoso seria se tivessem uma víbora envolta engasgando-lhe a fala.
O assassino que cobre a boca daquele que lhe foi encomendado dar parte, corta-lhe a garganta fazendo uso da adaga. Da mesma maneira o faz com sutilidade o espinho que preso agarra-se sufocando a quem se acha seguro enquanto se alimenta.
Dizia-se que para garantir que um defunto não sofresse de vampirismo era necessário separar o corpo da cabeça.
A cabeça, o paraíso onde a razão impera é o lar das idéias e dos estratagemas e só através dessa ponte, dessa escadaria é que se liga ao corpo, terra dos prazeres e sofrimentos, das sensações e sentimentos, volúvel, imprevisível.
Nada é mais belo do que os ombros nus de uma mulher e de sua cabeça erguida pelo pescoço orgulhoso por sustentar algo tão belo, enigmático, perigoso e feminino quanto uma esfinge, o rosto de uma fêmea consciente de seu poder.