Pais e Filhas
- Não quero mais discutir sobre esse assunto entendeu? Não quero mais ouvir você falando, fique quieta e me obedeça... Eu sou seu pai.
- Não fico. Tenho tanto direito quanto você de falar. Ainda mais que você está errado.
- Posso até estar errado, mas eu sou seu pai e você não vai sair para aquele lugar e fim de papo.
- Mas pai, todas minhas amigas vão. Você nem conhece o lugar.
- Não tem nada de mais... Não me irrite mais do que já estou. Você não trabalha o dia inteiro em um escritório para saber o que eu estou passando entendeu? O dia que você trabalhar e se sustentar não vai mais precisar me obedecer. Mas por enquanto, enquanto você comer a comida que eu ponho na mesa vai me obedecer por bem ou por mal entendeu?
- Eu não quero a sua comida, não quero nada seu... NADA.
Foi para o quarto batendo a porta com força. Ligou o som bem alto e deitou-se de bruços na cama, a dor parecia que explodiria sua alma em mil caquinhos.
O pai nunca havia batido nela, nem nunca havia gritado. Sempre calmo e pacato, como se carregasse nas costas a tristeza do mundo num saco enorme. Era um cara quieto, quase não falava, os familiares achavam ele um quietão sem sal, um cara morno, acostumado com a vidinha de sempre, sem amigos, sem grandes expectativas pela vida. Ela era filha única e desde que se lembrava seu pai não lhe dava muita bola, conversava o necessário, dava bom dia, boa tarde e boa noite, se quisesse alguma coisa mais séria mandava recado pela mãe dela.
Uma vez, quando era pequena, escutou atrás da porta alguma tia fofocando que ele sempre quis foi um filho, um companheiro para ir ao estádio com ele, tomar uma cerveja no final do dia:
- Você vai ver mulher, quando ele ficar mais velho nós vamos juntos lá no bar do Junqueira, vou apresentar ele pra todo mundo. Vai ser meu amigo... Você vai ver.
Era assim que ele sonhava. Mas, quando ela nasceu ficou mais calado do que já era, o casal não poderia mais ter filhos. Continuava sem amigos, ao menos era o que a família pensava.
Os cunhados invejam sua capacidade de permanecer sóbrio. Nas festas da família todos começavam a falar suas bobagens, vomitar, discutir, falar alto, essas coisas de bêbados e ele lá impávido, firme e quieto. Como se fosse um observador e não alguém que fizesse parte daquele grupo. (parecia que sentia pena dos outros)
Saber que o sonho dele era um filho e não ela afastou-os mais ainda.
Nesse dia, era a primeira vez que falava com ela daquela maneira. Não se importava se ela saísse na noite com as amigas, nunca falou nada, algumas vezes até foi buscá-las, ela e as amigas na saída das festas. Levantava de madrugada sem falar nada e ia de pijama com os olhos remelados. Nunca reclamou, aliás nunca falou nada, ou melhor, dizia boa noite quando as meninas entravam no carro, e só. Ela agora estava no primeiro semestre da faculdade, e mais distantes ainda haviam ficado um do outro. Não entendia porque ele foi encasquetar com aquele lugar que ela queria ir, ainda mais agora.
- Que merda – dizia para as paredes andando pelo quarto – nunca me deu bola e agora vem dar uma de puritano.
Andou de um lado para outro até desistir da idéia de insistir e foi dormir.
Na faculdade ela aprendeu a fumar baseado, tomar cerveja e jogar truco entre uma aula e outra. O baseado largou na segunda semana, ficava rindo a toa demais, e a combinação com a cerveja não lhe fazia muito bem. Optou pela cerveja, aliás, talvez por alguma coisa genética, possuía a mesma capacidade de permanecer sóbria que o pai, os marmanjos que davam em cima dela dormiam na mesa ou caiam pelos cantos e ela ia embora sozinha tranqüilamente. Sua fama ganhou os corredores da academia, até que arranjou um parceiro tão bom quanto ela no copo.
Rones era um cara muito simpático, alto, magro, com dentes tão brancos que parecia sair de um comercial de pasta de dente, muito estudioso e excelente filósofo de botequim, além de exímio jogador de sinuca e porrinha. Ficaram muito amigos, desses que não se largam nunca, não namoraram porque sabiam que ia estragar sua parceria, afinal, dizem que “onde se come o pão, não se come a carne”. É que Rones ensinara a moça a jogar truco, se tornaram tão bons no negócio que sentavam no bar depois da aula e só saiam quando o último ônibus estava partindo ou não agüentavam mais tomar cerveja, todas pagas pelo pessoal que perdia para eles, cada rodada valia uma cerveja. Não que ele não tivesse pensado no assunto, ela era uma mulher que chamava atenção, mas sua simpatia e franqueza expulsaram essas idéias rapidamente.
Quando jogavam não faziam muito escândalo como a maioria dos jogadores de truco, possuíam sinais para todas as cartas do baralho e uma frieza desconcertante para os adversários. Várias duplas tentaram vencê-los, alguns mais machistas se revoltavam com o fato de uma quase menina ser melhor que eles nas cartas e no trago.
Um dia ele chegou à universidade com uma proposta:
- Vamos participar de um campeonato.
- Sério? Legal. Vai valer o que?
- Duzentos reais, duas caixas de cerveja e um porco.
- Nossa, sou vegetariana tu sabe, mas aceito a cerveja e a metade do dinheiro.
- Beleza então, sábado eu passo lá na tua casa pra te pegar.
No sábado ele passou lá e chamou por ela, quando saíam cumprimentou o pai dela que também estava de saída e grunhiu algo que ele não entendeu se era um “boa tarde” ou um “tudo bem”, o pai foi para o ponto de táxi e eles foram para o ponto de ônibus. No caminho do bar onde aconteceria o campeonato iam rindo e combinando alguns sinais novos, ele dizendo que não seria a mesma coisa que o bar da universidade:
- Os caras são bons, não dá para vacilar.
Ele estava com os vinte reais da inscrição. Ela com dez, o que daria para três cervejas para os dois e um pacote de amendoim, quando esse dinheiro acabasse, só poderiam tomar outra no final do campeonato e isso se ganhassem, se não, ainda por cima voltariam para casa a pé.
Ao chegarem ao bar foram se inscrever. Fora o fato dela ser a única mulher no recinto, o que mais chamava a atenção era o próprio bar, que existia há mais de quarenta anos no centro da cidade. Atrás do enorme balcão de madeira maciça havia uma enorme quantidade de garrafas de cerveja de todos os gostos, estilos e procedências que se exibiam nas prateleiras. Em uma mesa mais afastada um grupo de uns seis ou sete homens escutavam o que estava sentado ao centro falando alto, contava uma história que parecia engraçada visto a cara dos caras. Ela teve que arregalar os olhos para ver melhor, suas pernas ficaram tremendo.
- Como é o nome desse bar Rones?
- Acho que é bar do Junqueira. Sabia que nos anos setenta ele foi fechado pelos militares? Nas paredes havia fotos da...
- Puta que pariu, olha lá o meu pai!
Era mesmo o seu pai. Naqueles dois minutos que ficou ali olhando aquele quase estranho, viu seu pai falar mais do que em toda a sua vida.
Rones também se espantou, conhecia o cara há alguns meses e nunca imaginou ele daquela maneira, parecia um zumbi em todas as vezes que o viu, agora estava ali, charuto na mão, chapéu panamá, um copo de conhaque de um lado, um de cerveja do outro e falando pelos cotovelos. Quando ele viu a filha no balcão, fez um aceno com a cabeça como se fossem conhecidos distantes... e só.
Haviam doze duplas inscritas, incluindo os dois. Na hora de começar o campeonato, iniciou-se uma celeuma com alguns velhos freqüentadores, o caso era se a moça poderia participar ou não, uns gritavam que o bar era tradicional, que mulheres só deveriam ir ali à noite, durante o dia o recinto era exclusivo dos antigos freqüentadores, o pessoal da velha guarda.
- Porra Junqueira, o quê que vai virar esse ambiente se qualquer dupla puder jogar?
Gritava um mais exaltado.
- Eu não venho mais aqui. – dizia outro.
- Tava na hora disso acontecer - dizia aquele.
O tal do Junqueira parecia ter parado no tempo, a cara tinha tantas rugas que se tinha a sensação de que a qualquer momento sua pele começaria a derreter, cabeça completamente branca, andava devagar e algumas vezes não servia a cerveja para qualquer um, olhava para a cara do sujeito e lhe dizia na lata:
- Essa cerveja não é para você meu filho, toma uma Skol que você vai gostar mais.
- Mas eu tô pagando e quero aquela.
- Mas eu sou o dono do bar, se não quiser vá procurar outro lugar.
O cara tomava a Skol e ia embora sem entender nada.
- Pecado desperdiçar uma cerveja dessas com um cara de bocó desses...
Junqueira tinha apesar de tudo olhos vívidos e sabia tudo que acontecia no bar. Todas as despesas de cada mesa na cabeça, até o que cada um tomou ou comeu.
Depois de muito discutirem o Junqueira gritou para a mesa lá do canto que continuava sua conversa alheia ao resto do bar:
- Ô Valmocir! O que tu acha disso aqui.
Valmocir era o pai da moça.
- Que foi?
- Chega aí.
Quando ele se levantou o bar todo ficou quieto, respeitavam o cara. Ela ficou pasma.
- Fala Junqueira.
- A moça aqui veio pro campeonato e o pessoal não tá querendo que ela jogue, tão falando da tradição do bar e coisa e tal.
Valmocir estava com o charuto no canto da boca, ajeitou o chapéu para trás, olhou para a moça e depois percorreu os olhos pelos homens que esperavam seu veredicto. Olhou novamente para a moça e encarou seus olhos a ponto dela baixar a cabeça.
- Tá valendo o que Junqueira?
- Duzentos reais, duas caixas de cerveja e um porco.
- E tu vai fazer o que se ganhar menina?
- Tomar a cerveja.
- Aonde?
Ficou em silêncio um pouco.
- Aqui no bar mesmo.
- Hahã... certo, certo... – deu uma coçada no queixo, olhou de novo aquela menina que segurara no colo há dezoito anos atrás – e você acha que sabe jogar bem?
- Não acho, eu sei.
Mais uma coçada no queixo.
- Deixa a menina jogar Junqueira. E vocês aí deixem de ser atrasados e cagões.
Jogaram e ganharam, em uma das partidas deram de zero numa dupla de macacos velhos, que só gritavam e batiam na mesa.
Só então Valmocir se aproximou. Durante as partidas continuou na mesa do canto, que ao que parecia era dele e de seus amigos, a mesa agora contava com dois violões, um cavaquinho e um pandeiro de couro. Além da voz do Valmocir que puxava sambas de Cartola, Yvone Lara, Monarco e Nelson Cavaquinho.
- Ganhou então? Parabéns.
- Pois é, foi tranqüilo. Uma mulher deixa os caras nervosos.
- E a cerveja?
- Quer tomar?
- Pode ser. Posso dividir com alguns amigos?
- Claro.
Chegando na mesa, falou:
- Pessoal, essa aqui é minha filha, ela vai tomar uma cerveja com a gente aí.
Conversaram como velhos amigos, a moça perguntou se ele gostava de Noel, o que fez ele chamar a atenção dos amigos falando do pedido da menina. Já era quase oito da noite quando disputaram uma partida de sinuca valendo uma dose de Napoleon. Lá pelas tantas, quando ela matou a oito na caçapa do meio de tabela ele perguntou:
- Você gosta de futebol?
- Gosto.
(...)
- O que você vai fazer no Domingo?