DEPOIMENTO I : O ÁLCOOL E EU / ANO DE 2002
Não sei o que é. Me questiono todos os dias. É algo que nasceu e eu não senti. Cresceu sem eu me dar por conta. Só sei que não sentia na infância, na adolescência. Acho que não sentia porque fui uma criança e uma adolescente modelo. Estudava, passava com as melhores notas... aí não tinha porque haver repressão. Na juventude continuei a ser modelo de filha. Trabalhava, cursava faculdade e era virgem.
Na década de 70, ser virgem aos 24 anos era algo fora dos padrões feministas. Eu me sentia meio "estranha no ninho", muito cobrada pelas amigas precursoras do "desvirgianismo".
Eu me perguntava: afinal, por que manter intacta uma coisa tão idiota como o hímem? E me questionava: por que Deus foi tão machista ao ponto de colocar essa coisa ridícula na mulher?
Apesar dos questionamentos, não dobrei o joelho. Surgiram oportunidades, até me taxaram de fria... mas, apesar das pressões, eu resistia. Não foi por preconceito, nem por dar valor a esa idiotice que me mantive "virgem". Da minha vida só eu sabia e, apesar de me chamar Maria, eu não ia com as outras. Estudei, trabalhei, me formei e me mantive virgem até quando quiz.
A família aplaudia! Afinal, filha modelo, estudiosa, aplicada e virgem não era qualquer mãe que tinha no virar dos anos 70.
Lá pelos 30 anos, idade em que todas as minhas primas haviam, há no mínimo uma década, contornado o "cabo da boa esperança", eu resolvi entornar o caldo. Resolvi tomar as rédeas, soltar a franga, gozar tudo o que a vida não tinha me dado.
Aí começaram os problemas. Vieram as cobranças, as censuras, vieram os medos, veio o vício... "Mariazinha não é mais a Mariazinha", "a Maria virou mundana, vive na boemia, a mãe não dorme mais". A família toda se meteu. "Coitada da mãe", falavam tias e primas... Falaram, falaram anos e, por anos, lastimaram a sorte (ou o infortúnio) da mãe.
Ninguém, com exceção de uma prima, teve a piedade e o respeito de ouvir a filha...
Fui o horror da família durante uma década; fui a maldita, a ovelha negra, a "mata-mãe".
Aí comecei a me cuidar; fingia ser o que não era, sufocava meus anseios, pisava na ponta dos pés, procurava não fazer barulho; acordava e fingia estar dormindo... Aí começou o medo. Deixei de ser o que eu era, e eu só era nos momentos em que me fechava no quarto e me embriagava. Fugia da censura, da repressão e lá, no silêncio e na escuridão do quarto, eu despia minha alma. Aflita, sofrendo por ter que fingir, eu me refugiava nas poesias, no álcool, no cigarro. Me consumia, noite após noite, e fazia um esforço enorme, sobrenatural, para levantar e empurrar o corpo cansado para o trabalho no outro dia. Porque, apesar das noites de boemia, do desgaste e do desespero noturno, no outro dia eu tinha que estar lá. O trabalho me exigia, eu não podia fugir as responsabilidades. Quebrada por dentro e por fora, meio "no ar", eu ia. O relógio despertava e o esforço era desumano... mas, mesmo assim, mantive minhas responsabilidades nesses 30 anos de trabalho. Por muitas vezes quase naufraguei; o cansaço e o desânimo quase botaram tudo a perder: vida e emprego.
E todas as vezes, quando estava a sucumbir, a mão de um ANJO conduziu meus passos... Cansada, alcoolizada, quebrada, eu juntava os cacos e me mantinha em pé. Quantas vezes fingi estar ali trabalhando, e só meu ANJO sabia que minha cabeça rodava, só ELE sabia que eu estava a ponto de desmaiar, porque era ELE que sustentava meu espírito!
Hoje, ultrapassado meio século de vida, eu ainda me vejo sufocada por esse medo. Parece que não tenho história, que sou uma idiota, porque a censura ainda é uma sombra em minha vida. Acho que não vou me sentir livre nunca. Adolescente certinha e pura era coisa que me pesava. Adulta desgarrada e boêmia tenho o pé preso nos grilhões. Só vou até onde a corda estica. Insone, estressada, só o trabalho melhora meu conceito frente aos que amo...
A imagem bonita da única universitária da família, que preferiu estudar a "pescar" marido na década de 70, se perde hoje nocauteada pela realidade. A realidade quebrou a cara da guria que investiu nos próprios pés. A realidade provou que está melhor quem investiu na cabeça, na esperteza... Mas, isso é conversa para outro dia.
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NA: Esse desabafo foi escrito na época em que a bebida me dominava completamente e eu não admitia ser alcóolatra. Foi a época da revolta contra o mundo. Minhas primeiras tentativas para deixar o vício começaram em 2003 e nessa luta levei 5 anos...