Crônicas da Esquina ( O Patinete )
O PATINETE
Era antevéspera de Natal, ocasião de presentes e sinceros votos de felicidade e saúde. O nascimento do Menino traz sempre a esperança de que também nós renasceremos como a fênix encantada, espantando os azedumes e as más auguras acumuladas ao longo do ano que, afinal, expira. E como precisamos dessa esperança para estarmos vivos, então a embalamos em nossa incrível capacidade de acreditar num Papai Noel que virá nos trazer as boas – novas.
Com este espírito, o bar do Costa é só confraternizações. Copos erguidos em sucessivos brindes, abraços calorosos e amizades reconstituídas por mãos que se apertam e se prometem deixar assim. Na mesa em frente à banca, a mesma composição de sempre: Vitório, Athayde, Lídio, Osmani e Correia. Bebem às saúdes e divertem – se. Pelos gritos e cuspes atirados ao pé da árvore, associados aos abraços e beijos babados, percebe – se que o nosso italiano já está prá lá de marraquechi.
Uma senhora, vizinha simpática e educada, aproxima – se:
Seu Vitório, será que o senhor poderia guardar esse presente do meu neto até amanhã? Sabe, é uma surpresa do Papai Noel que eu não queria que ele descobrisse antes! Pisca – lhe o olho como a solicitar – lhe a cumplicidade.
Nosso jornaleiro mostra – lhe sorridente a banca. Ela parte feliz para casa; ele, para o copo. Numa de suas idas ao mictório, Correia usurpa – lhe o embrulho e o esconde na mala do carro. Pacto sagrado, ninguém ousa falar nada. Sem nada perceber, o dia vai sendo tocado. Conversa vai, gelada vem, Vitório fecha a banca e, sem despedir – se, como de costume, evapora pela Torres Homem.
No dia seguinte, tudo combinado, o mesmo time está reunido. Dia agitado por conta da data, as horas vão passando e as cervejas empilhando nas inúmeras mesas já apinhadas.
A senhora da véspera chega:
Seu Vitório, cadê o patinete do meu neto?
Que patinete? Responde enquanto vasculha em volta.
Aquele que eu pedi para o senhor guardar ontem! A senhora impacientava – se.
A mim a senhora não pediu nada! A senhora está vendo algum patinete aqui?
A senhora desiste de argumentar e bate em retirada. Visivelmente nervoso, saranda pela banca. O silêncio dos amigos dava – lhe a certeza de que tinha truta no meio. Mas, se não lembrava, como acusar? No entanto, não tinha outra escolha. A primeira vítima foi o Athayde que, tendo neto pequeno, desenhava – se como o culpado ideal. O nego véio pulou nas tamancas e atirou – lhe imprecações intraduzíveis aqui. Osmani acende o braseiro:
Vai ter que pagar um patinete novo! Onde já se viu perder um embrulho tão grande?
Vitório começa a perder a linha:
Como pagar? Eu não guardei nada!
Guardou sim que eu vi! Todos viram! Osmani encarava – o sério.
Lídio, com sua calma de artista bem treinado, contemporiza:
Vitinho, entra num acordo com ela! O garoto está esperando o presente dele! Conversa com ela; vê se ela faz em três vezes! Risos arrebentam como o mar em ressaca.
A senhora retorna, agora com o filho que, inteirado da brincadeira, vai direto ao assunto:
Vitório, eu quero o patinete do meu filho!
Mas eu não vi patinete nenhum! Eu juro!
Não quero saber, Vitório, dá seu jeito!
Pá daqui, pá de lá e já à beira de um ataque de nervos, selou – se o acordo: três prestações de cinquenta reais. Vitório já ia se adiantando para pagar a primeira quando Correia chegou com a caixa. O velho jornaleiro ameaçava explodir, mas o pai do garoto adiantou – se e abraçando – lhe, disse:
Brincadeira, Vitório, liga não! Feliz Natal prá você! E foi embora com a mãe e o embrulho. Vitório olhou a todos em perigoso silêncio. Segundos de viva apreensão, até que uma brisa natalina refrescou – lhe o sangue e ele riu como há muito não se via. Carinhosamente, xingou a todos e sugeriu um brinde porque, afinal, só quem morre de véspera é peru.
Aldo Guerra
Vila Isabel, RJ.