ABANDONO *
“...Migalhas dormidas do teu pão
Raspas e restos
Me interessam
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam, me interessam...”
(Maior Abandonado, Cazuza)
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Eu fui procurar uma senhora que vi no jornal. Lá na praça da rodoviária onde ela vive. O que me chamou atenção não foi o abandono. É que ela é da minha cidade, Itabira. Está aqui em Belo Horizonte por que os filhos a abandonaram ou ela abandonou os filhos. Não sei de quem partiu a iniciativa. Isso virou algo tão corriqueiro nas ruas das grandes cidades que esses seres são como elementos da paisagem urbana. Como postes que se mexem e têm vontades de vez em quando. Só são notados pelo cheiro que incomoda, pelas necessidades fisiológicas que fazem nas ruas. Mas esse não é um tema que eu quero para uma crônica sobre abandono. É um caso crônico de polícia, justiça, das injustiças que já não fazem tanta diferença a quase ninguém. É assim, dizem quase todos: uns vencem na vida, outros não. Tem milhares de argumentos, de justificativas, umas mais sórdidas que as outras. Tem até teorias sociológicas, psicológicas de que a desigualdade é inerente ao ser humano.
Atualização da teoria de Malthus. Aquele inglês que disse no século dezoito que a melhor maneira de se acabar com a pobreza era eliminando os pobres através da fome, das pestes e das guerras. Em certa medida, mesmo que não esteja nos programas de governo do mundo, tem dado resultado. Outro dia eu vi um senhor dando umas moedas para um homem imundo e maltrapilho na rua. O homem estendeu a mão para agradecer ao senhor e este recusou. Depois se virou para os passantes e com aquela fisionomia de asco (acho que era asquerosa), comentou “ Tá louco, que nojo!”
Ainda não é dessa forma que queria tratar do abandono em uma crônica. Que saco!
A senhora da entrevista era articulada no linguajar, disse que possuía casa, já teve trabalho, mas resolveu ir morar nas ruas. Quando a pergunta era sobre os filhos ela desviava o olhar despistando as lágrimas que insistiam em derrubar a sua altivez momentânea e vacilante.
A mídia faz sempre esses trabalhos maravilhosos. Mas fica lá num canto de página. O que importa mesmo à grande maioria é a chamada de capa, a manchete (resulta em venda imediata). O resto cai no esquecimento, no abandono também.
Já reparou que com o advento do “politicamente correto” o menor abandonado ganhou o eufemismo de menino de rua? Fica até mais fácil mantermos o estado de abandono com menos culpa. A semântica ajuda bastante nos gestos.
O abandono não encontra redenção em nenhuma teoria. Não sucumbe à insensibilidade. Saí daquela cena. Na mente, uma definição doída: a fotografia da indiferença jogada ao relento.
Não consigo falar mais nada.
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* Publicado no site Duelos Literários como tema do mês de setembro/09