MORREU, VIROU SANTO?

Ontem à tarde fui a um velório. Não é um programa que eu goste de fazer, especialmente em um domingo à tarde, mas mais do que um compromisso moral, tratava-se de um último adeus por quem eu nutria um afeto especial.

Nice era seu nome. 77 anos, cadeirante desde os 2 anos de idade devido à paralisia infantil. Há pouco tempo, superou um câncer de mama que lhe causou a extração do seio. Era a alegria de viver em pessoa, apesar das adversidades da vida. Bebia, fumava e saía pela avenida, feliz da vida, com sua cadeira de rodas motorizada e toda a vez que me via, buzinava três vezes e depois dizia: “ – É minha saudação. Estou dizendo: Pa-trí-cia”. Era fervorosa torcedora do grêmio e assídua atleta de basquete do time de pessoas com necessidades especiais. Sei que o que estou dizendo até parece ser um obituário, e quase é de fato, não fosse o motivo a mais que me leva a escrever.

Um dia antes de seu falecimento, encontrei-a em frente à instituição onde curso minha pós-graduação. Fui ao seu encontro, abracei-a e beijei-a. Ela, mais do que nunca, mostrou-se receptiva ao gesto e feliz como eu nunca a vira. Perguntei o que fazia ali e ela respondeu-me que iria jogar em seguida. Não me flagrei na hora (a gente nunca se dá por conta), mas aquela seria a última vez em que a veria com vida. Pelo que soube, ela parecia diferente naquele dia, quase como se soubesse que iria partir dali algumas horas. Eu tive a oportunidade, mesmo que inconscientemente, de me despedir dela.

Nice não era uma pessoa tão bem quista assim. Algumas pessoas diziam que ela usava de sua deficiência para chamar a atenção. Eu, que a conhecia, sabia que ela ostentava um gênio nada fácil. Era difícil, deveras, a convivência com ela, mas esporadicamente, dava para tolerar sim. Fico pensando que, talvez, muitos possam se chocar com o que estão lendo nessas linhas, mas acredito que ninguém vira santo depois que morre. A pessoa parte deste mundo para outro plano espiritual, mas suas atitudes ficam marcadas para sempre na memória de quem aqui permanece. E não vou canonizá-la – nem tenho esse poder – justamente agora, depois que seus olhos cerraram-se para todo o sempre. Ela cumpriu sua missão e agora deve estar em um lugar muito melhor. Ao menos eu penso assim. Além disso, na situação em que sobrevivia, foi bem melhor que ela partisse do que permanecesse enferma, para o resto de seus dias, sem mobilidade alguma.

Não virou santa, mas deixará saudades. Adoraria manter em minha mente a sua imagem feliz, do último dia em que nos vimos, mas acho que ela merecia uma despedida decente. E, certamente, sentirei sua falta, ainda mais quando passar pela avenida e não ouvir mais as buzinadas ou visualizar a cadeira de rodas motorizada, vindo em minha direção.

Patrícia Rech
Enviado por Patrícia Rech em 14/09/2009
Código do texto: T1810435
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