Como não falar...


          Abro o jornal e vou direto ao obituário. Os anos idos e vividos levam-me a visitar, diariamente, essa coluna que, um dia, chamei de coluna da saudade.
          Embora, para um irreverente e velho amigo meu ela possa, também, ser chamada de "coluna do alívio".
          E despido da tal solidariedade cristã, ele, implacável, sentencia: "Para certas pessoas, cara, a morte é mais do que necessária."
          Para ele, que foi seminarista franciscano, a história do  Mors omnia solvit não funciona. Ou seja, ele não aceita aquela de que, com a morte, tudo desaparece; tudo se dilui.
          Se o sujeito não prestou em vida, por que beatificá-lo após sua morte? É o que ele pensa, sem se mostrar constrangido.
          Nunca contestei esta sua opinião. Ponto de vista que até para aqueles que não acreditam em coisa alguma pode soar como radical e impiedoso. 
         Deixo-o à vontade para pensar o que quiser sobre a morte e sobre os mortos. 
          De repente ele terá razões de sobra para se considerar aliviado com a ausência definitiva do cidadão que viu ser enterrado ou cremado e que, vivo, só lhe causou transtornos.
          O surpreendente é que o meu silêncio diante de sua extremada opinião não o impede de tentar a minha adesão à tese de não perdoar os mortos que, enquanto estiveram por aqui, só nos trouxeram dissabores.
          E por falar em cremação, aproveito para manifestar a minha irremovível simpatia pelos crematórios. 
          No meu modesto modo de ver, a cremação é uma maneira digna do cidadão mergulhar na eternidade. 
          Nada mais desconfortável para um defunto do que servir de banquete a milhares de vermes que, vendo-o chegar ao Campo Santo, acorrerão, famintos, à sua sepultura, para devorar-lhe as vísceras. 
          Ah, retrucam os beatos, que, com a  cremação, o homem não volta a ser pó - Lembra-te homem que és pó e a ele hás de voltar - como está na Bíblia. 
          Me perdoem, mas acho que há pouca diferença entre voltar a ser pó ou virar cinza.
          O meu tempo de acreditar que o homem foi feito do barro já passou, e faz muitos anos.
          Mas não foi para justificar minhas repetidas visitas aos obituários que escrevi tudo isto. Esta minha crônica tem muito de saudade e é quase um pequeno necrológio.
          É que acabo de descobrir, entre os mortos que figuram no obituário que tenho em mãos, o guardador de carro que, anos a fio, zelou pelo meu fusquinha, o meu primeiro carro. 
           Ele foi enterrado, ontem, no cemitério dos pobres de Salvador.
          Perdi-o de vista, desde que deixei de frequentar o Centro Histórico de Salvador onde, durante anos, mantive, em atividade plena, o meu escritório de advocacia. 
          Mas nunca o esqueci. Não só por causa do seu finório trato, como pela seriedade que ele emprestava ao seu trabalho de zelador do patrimônio alheio, posto, momentaneamente, sob sua inteira responsabilidade. 
          Assim era o José Carlos da Silva, Seu Silva, como seus clientes o chamavam, e como consta do obituário que a gazeta publicou. 
          Escreveu Rubem Braga, o Sabiá da crônica, que "o mal de um cronista idoso é sua tendência de só falar dos mortos".  Tenho procurado escrever pouco sobre os meus mortos. 
          Mas não podia deixar de levar o meu adeus ao bom Seu Silva. Lembrado de que, muitas vezes, ele me tirou do sufoco que, já naquela época, provocava o tráfego, no centro da capital baiana, desenhado para receber charretes e carruagens e não carros de luxo (?) como o meu inesquecível fusquinha creme. Que ele descanse em paz.   
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 14/09/2009
Reeditado em 22/10/2020
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