A Cássia teria repetido -- Je ne regrette rien!
Lendo uma das maravilhosas crônicas do meu amigo Dante Marcucci, em que ele cita a Cássia Eller cantando "Non, je ne regrette rien", foi inevitável me lembrar com muito carinho e saudade da amiga precocemente falecida.
Quem não a conheceu pessoalmente, poderá ter uma impressão bastante desfavorável. E nem culpo quem pense assim, porque ela, de um jeito ou de outro, foi responsável por isso, ainda que sem intenção real.
Conheci essa figuraça muitos e muitos anos antes da fama, antes ainda que ela tivesse se tornado conhecida mesmo aqui em Brasília.
Era de uma timidez absurda! Parecia uma criança assustada quando se encontrava entre desconhecidos, especialmente quando julgava estar muito abaixo destas pessoas. Muito humilde, parecia não entender que tinha muito talento, inteligência e um imenso potencial artístico.
Era ainda extremamente ligada à família e aos velhos amigos. E demonstrava isso em atitudes positivas e afirmativas, sem exageros derramados e sem rasgação de seda. Ao contrário, boa sagitariana que era, tinha um fino senso de humor e muitas vezes demonstrava o seu carinho através de piadas e ditos chistosos e irônicos. Mas o seu olhar era tão amoroso que parecia abraçar a gente, especialmente quando a gente tava necessitada de um bom afago de irmã.
Quando eu e outros amigos a conhecemos, ela tinha ido morar com uma nossa velha companheira dos tempos da universidade. E como o minúsculo apartamento dessa amiga era o ponto de encontro da turma, estávamos quase sempre por lá.
Não foram poucas as vezes que a vi e ouvi tocando violão e cantando. Como eu mesma costumava arranhar uns "chacatungas" e cantar com minha afinada porém pequena voz, tinha parâmetros pra distinguir a capacidade da nova amiga, que reconhecia promissora e muito acima da minha própria, amadora assumida. Ela ria muito com meu jeito um tanto desajeitado, mas incentivava e ensinava com toda generosidade e paciência. Ah, as grandes gargalhadas da Cássia... eram contagiantes e elevavam o astral de qualquer um. Em pouco tempo, já éramos íntimas como velhas primas que cresceram juntas.
Entretanto, só fomos apresentados ao real talento da nossa amiga quando a vimos pela primeira vez num palco. Inesquecível!
Era um bar meio hippongo na Asa Norte, o Bom Demais, onde havia um pequeno palco em que se revesavam, noite após noite, artistas ainda pouco conhecidos na cidade. Na noite de estreia da Cássia, em que ela tocaria e cantaria principalmente músicas dos Beatles, foram todos os amigos em bando, pra prestigiar. Eu, fanzoca do quarteto inglês desde criancinha, não perderia isso por nada!
Logo nos primeiros acordes, quando ela soltou voz e corpo e iluminou o rosto, pondo toda a alma no que estava fazendo, nossos olhos se arregalaram e nossos queixos despencaram! O que era aquilo?!? Como poderia aquela menina tímida e tão humilde virar aquela diva absoluta no palco? Viramos fãs incondicionais no ato!
Então, tive o privilégio de acompanhar de perto toda a trajetória da amiga, enquanto ela ainda morava por aqui.
Depois que ela e a Eujas foram embora pra Sampa e, em seguida, pro Rio, nossos contatos ficaram mais espaçados. Eu acompanhava de longe, mas com atenção. Vibrei junto com os velhos amigos quando ela gravou o primeiro disco, ainda no tempo das bolachas de vinil. E sempre que rolava uma oportunidade, fazia críticas sinceras e elogiava o que havia de bom -- e como havia -- e ela ouvia, refletia, argumentava e respeitava nossas opiniões. Sabia valorizar as velhas e sinceras amizades. Mesmo quando eu dizia que ela estava exagerando nas demonstrações de agressiva malandragem e macheza nos palcos, assim como na vida louca fora deles.
Quando o seu filho Chicão nasceu, aconteceu o que eu previra e torcera pra que acontecesse -- ele foi amansando, de um modo ou de outro, aquela figura sagitarianamente dada aos exageros.
Tudo com ela era muito -- muita voz, muito talento, muito amiga, muito louca, muito feroz no palco e terrivelmente humilde fora dele, a ponto de uma ocasião ter fugido de uma festa porque o Caetano foi sentar-se à mesma mesa em que ela, Eujas e Chicão se sentavam. Era elogiada por ele, bem como por diversos monstros sagrados da MPB, a cada novo trabalho e ainda assim se julgava não merecedora, porque não tinha noção do seu real valor. Perfeccionista ao extremo, nunca ficava satisfeita, sentia que sempre teria o que melhorar e aprender.
Na sua última apresentação aqui em Brasília, num grande show em que apresentou o último CD, o Acústico MTV, e em que todos os amigos e familiares compareceram -- além de uma multidão de fãs apaixonados --, pudemos notar, com alegria, que a cantora, bem como a amiga, estava mais amadurecida e burilada. Estava mais suave e muito mais elaborada. Foi de longe o seu melhor trabalho e justamente aquele em que ela gravou "Non, je ne regrette rien", numa versão tão perfeita, que imagino que a própria Piaf ficaria orgulhosa de ouvir.
No final do show, ela paciente e alegremente recebeu nos bastidores toda a longa fila de amigos, parentes, fãs conhecidos e desconhecidos que foram dar o seu abraço. E, claro, nenhum de nós desconfiava que seria o último espetáculo por aqui e o último abraço compartilhado.
Alguns meses depois, recebemos chocadíssimos a notícia de sua morte. Cuja causa, aliás, ao contrário do que teria sido afoitamente anunciado, não foi uma overdose, mas um enfarte fulminante. Ninguém há de negar que isso tenha sido consequência dos excessos e abusos daquela criatura intensa e compulsiva. O que é lamentável, sem dúvida. Mas, quem haverá de a julgar ou condenar?
Ao contrário, só temos a agradecer o seu carinho, a amizade e o imenso talento, que tantas vezes nos presenteou com momentos de puro êxtase e alegria. Portanto, na verdade, não há nada a lamentar.
E sempre que penso nela -- e penso nela com uma certa frequência -- prefiro visualizar a Cássia nos seus momentos mais luminosos e criativos, soltando aquele vozeirão maravilhoso, aquelas gargalhadas contagiantes e tocando aquele violão divino.
O Céu deve estar bastante alegre com ela solta por lá. E até São Pedro deve estar dedilhando uns rocks pauleira n'alguma lira emprestada por um anjinho. Companhia talentosa, aliás, é o que não falta.